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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

De , antonio lobo antunes

 



                   "O sítio onde moro em Lisboa é uma aldeia. Tem merceariazinhas, lojecas, cabeleireiros pequenos, uma constelação de restaurantezitos, sapateiros, costureiras, capelistas. Não o habitam pessoas ricas, o que se percebe pelos automóveis, pela roupa, pelas caras. Toda a gente se conhece. Há pombos a sujarem os tejadilhos

(ainda bem que as vacas não voam)
gatos à Stuart Carvalhais e, no que respeita ao meu quarteirão, do algeroz para cima sou o melhor escritor. Ignoro se sabem o que faço, julgo que têm uma ideia vaga. Há quem me trate por senhor doutor e quem me trate por senhor António. Prefiro senhor António: afinal de contas sou um carpinteiro. Aqui ao lado, sempre que saio, um grupo de reformados joga à moeda. Digo
- Boa noite meus senhores
desbarretam-se
- Boa noite senhor doutor
e o jogo continua atrás de mim, solene. É à hora alegre e triste em que os candeeiros começam a acender-se e uma fininha melancolia, como escreveu o poeta cabo-
-verdiano Jorge Barbosa
(quem aqui não sentiu esta nossa fininha melancolia)
entra devagar em nós, doce, quase agradável, com a lembrança das pessoas de quem gostámos dentro, transparentes, a sorrirem. Caixotes de lixo cambulhando para a rua. Mulheres sentadas na soleira e o senhor António passando por elas com o livro na cabeça e a saudade dos mortos. Há armazéns também, eternamente fechados. Nas janelas iluminadas lustres, ângulos de armário, prateleiras forradas e eu cheio de ternura por aquilo tudo. Nem um pingo de vento nas árvores. O que estarás a fazer? A entrar em casa, a jantar? Daqui a poucos dias desatam a tornar-se pequenos e o cinzento deles a desbotar no meu peito, a fininha melancolia engrossando. Jorge Barbosa
Onde pára aquela que morava do outro lado da cidade, acolá no alto, de onde se via o mar?
E onde páras tu, senhor António? Metes a chave no buraquinho, entras e a sala enorme, escura. Livros, quadros, retratos. Os cortinados escondem os prédios em frente, o escritório negro, negro. Onde pára aquela que morava do outro lado da cidade, acolá no alto, de onde se via o mar? Fininha melancolia vem e cobre-me. Não me abandones neste momento que preciso de coisas suaves, dedos na minha testa, uma voz que me garanta ter um lugar no mundo. Não derivado aos livros, pelo menino que sou. Que desamparo às vezes: tenho esperança de escondê-lo bem. Sou tão importante eu, sou um grande autor e acabei de nascer. Uma impressão num dente mas a perspectiva da broca
- Ora cá temos uma cáriezinha desagrada-me. E os caixotes do lixo cambulhando para a rua. Vivo só. Não me custa. Quer dizer às vezes, à noite, custa, mas faz de conta que não custa. Ando a escrever um livro que não faço a menor ideia quando acabarei: são tão difíceis as palavras e demorei anos a dar conta disso. Ao princípio era canja. Até a gente perceber que há uma diferença entre escrever bem e escrever mal: então começa a angústia. Um pouco mais tarde percebe-se que há uma diferença, ainda maior, entre escrever bem e obra-prima: então a aflição é completa. De forma que aqui ando eu, de caneta na mão, na minha aldeia no centro da cidade em que acabado o jantar mulheres da vida, travestis. Bares de alterne perto, com uma fila de taxis à espera: tudo isso cheira a miséria rasca. Onde pára aquela que morava no alto da cidade? Num degrau à espera? Nasci de uma mulher e há ocasiões em que me esqueço disso. Devia lembrar-me o tempo inteiro.

" (2008) ANTÓNIO LOBO ANTUNES « O sítio onde moro »




1 comentário:

mariferrot disse...

De convulsão acesa, em cima de galhos de equívocos, desentendimentos,vocábulos renovados e polémica de longa duração, o ESCRITOR António Lobo Antunes é um dos romancistas mais lidos traduzidos e vendidos em todo o mundo !!!... <3


Beijo Conde