Seguidores

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Fernando Assis Pacheco







(da) nudez

A tua nudez inquieta-me.
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.
A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho "um pensamento despido";
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.
Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.
Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.


Fernando Assis Pacheco

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Fernando Pinto do Amaral








































Murcharam por engano as rosas onde agora
vive outra vez o teu amor por mim:
respiro o que restou do seu aroma
ainda tão recente e, no entanto,
a dissipar-se, como o do teu corpo
colado à minha pele, contaminando-a
com um rasto de alegria em cada poro
aberto a uma certeza que não é,
nunca foi deste mundo, que se eleva
no gelo de fevereiro, pelas frinchas
de portas e janelas, toda a noite.

Queria saber amar-te como aos vinte anos
se ama a escuridão iluminada
dos corpos e das almas, essa névoa
soberana e feliz, mas só me ocorre
pedir solenemente a um deus infantil
que apague num só gesto as nossas vidas
ao longo desses tempos irreais
em que as lágrimas tinham outra fé
na dor irracional que abria ao meio
os nossos corações, ameaçando
deixá-los para sempre à mercê de si próprios.
Nunca é bem assim, eu sei: mais tarde vem
o desejo de ser igual aos outros,
de levar uma vida a que chamem "normal"
e de encontrar alguém para nos embalar
um sono que adormeça os mais antigos sonhos
ou faça deles mera literatura.
Então habituamo-nos a isso
e cremos ser felizes, ao obedecer
às migalhas já secas de um sorriso,
a essa imagem sempre confirmada
no abrigo sereno das fotografias
ou nos espelhos baços que há nos olhos
de quem nos vai saudando, até ao dia
em que todas as cores se tornam estranhas
e em que as velhas rosas ressuscitam
erguendo as suas pétalas em busca 
de um céu mais inesperado e verdadeiro.

Só a partir daí é que sentimos
que podemos ser hóspedes do fogo
e que todas as leis deste mundo se cruzam
na mesma assombração: quem se apaixona
fica a saber que as rosas nunca morrem
quando o amor as dá e as recebe
num calafrio que nos salva e perde
a vida inteira. E tudo, nesse instante
- rostos feitos de luz entre as cinzas dos bares,
angústias ou remorsos em camas de hotel -,
é meu, nas tuas mãos, e desagua
no febril oceano dos teus braços.



Fernando Pinto do Amaral

sábado, 28 de outubro de 2017

Mário Quintana







POEMA DE AMOR

SE TU ME AMAS, AMA-ME BAIXINHO
NÃO O GRITES DE CIMA DO TELHADO
DEIXA EM PAZ OS PASSARINHOS
DEIXA EM PAZ A MIM !
SE ME QUERES A MIM,
ENFIM,
TEM DE SER DEVAGARINHO, AMADA,
QUE A VIDA É BREVE, E O AMOR MAIS BREVE AINDA

Mário Quintana   
Foto de Antonio Baptista.

eugénio de andrade

































Dormíamos nus
no interior dos frutos.

É o que temos: sono
e a estiagem subitamente
até ao fim.

Amargos.

Pela humidade descia-se
às fontes - lembro-me.
Dos lábios.



Eugénio de Andrade

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

António Carlos Cortez






confissão...







Adorei a cor do teu vestido
A cor de quando à noite a pele nos toca

Pudessem as minhas mãos ser o vestido
(estrangular-te a pele que me provoca)


António Carlos Cortez

Foto de Antonio Baptista.


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

VOAR EM REDE...................................







Voar sem rede
E não me perguntes porquê. 

E não queiras que te conte de mim. 
E não tentes encontrar a ponta do fio. 



Não há fio. Acredita. 



Não há ninguém por detrás de mim. A sério. 
E não há razões. Não há. Sobretudo isso, não há razões.


Sonha. 

Sonha que me sonhas. 
Sonha que sou um sonho. 
Sonha que desço do teu sonho para me deitar ao teu lado. 
Sonha. E eu vou sonhar também.


Foto de Antonio Baptista.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Maria do Rosário Pedreira





Nada mudou. Ao fim de tantos anos, o meu
passado é ainda o mesmo passado - nenhum
rosto diferente para desviar o rio da memória,
nenhum nome depois. Para te esquecer,

devia ter partido há muito tempo, como viajam
as aves de verão em verão. E tentei; mas as malas
abertas sobre a cama eram livros abertos, e eu
nunca deixei um livro pela metade. Por

ter ficado, nada mudou jamais - e o meu passado é
ainda o nosso passado; e o rosto que tinha antes
de me deixares é o que o espelho me devolve no
presente - embora outros me digam que o

que vêem na superfície fria desse lago é um vinco
na água, uma mulher muito mais velha do que eu.


Maria do Rosário Pedreira


Foto de Fatima Pereira.



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Manuel António Pina





primacial

Este dia, este momento.
O tempo único e imóvel atravessando-nos aos dois
como a uma superfície incrédula.
Eu e tu, antes e depois: tu, a Mesma.
E, no entanto, pouco pode o amor alcançar
senão a minha mão na tua mão.
O meu desejo é maior do que eu,
e eu maior do que o meu desejo maior do que eu.
Também o tempo se move imovelmente no tempo,
a esperança na incerteza,
o desejo na convicção da eternidade.
O amor é só um estremecimento de azul.
Perto do centro,
onde a vida e a morte (ambas desprezam
aqueles que se amam) riem.



Manuel António Pina

Foto de Antonio Baptista.

João de Deus






Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a dôce
E bella imagem tua, que eu quizera
Deixar de contemplar-te, só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo!

Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeleveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!...
Vejo-te sempre!... trago-te comigo!...


João de Deus  

Foto de Fatima Pereira.

domingo, 22 de outubro de 2017

Alice Vieira





Guarda-me adormecida para sempre no teu peito
ou deixa-me voar uma vez mais
sobre esta terra de ninguém
onde morro por qualquer coisa que me fale de ti.
Há noites assim em que o silêncio se transforma
ao de leve numa lâmina que minuciosamente
rasga o linho onde ficou esquecido
o corpo que habitamos
em provisórias madrugadas felizes...
Depois é só abrir os braços e acreditar
que ainda faltam muitas horas para a partida
e que à-toa pelos corredores ainda escorre
uma razão primeira a trazer-me de volta.
E eu adormecida para sempre no teu peito.
E eu acorrentada para sempre no teu peito.
E de novo entre nós aquele choro de quem
não teve tempo de preparar a despedida
com as palavras certas;
porque as palavras certas
estavam todas em histórias erradas
que outros escreveram em lugares nublados
que nem vale a pena tentar recompor.
Muito ao longe uma voz desgarrada
estabelece o fim do verão...
E eu adormecida para sempre no teu peito
e eu acorrentada para sempre no teu peito.

© Alice Vieira  

Foto de Fatima Pereira.


sábado, 21 de outubro de 2017

António Ramalho






PARA TE AMAR...

Para te amar, desenhei o meu coração,
Preenchi-o com o teu olhar,
Colei a tua foto e perdi-me em ti,
Para te amar...
Sequei as minhas lágrimas no teu amor...
E vivi a minha vida em teu corpo...
Para te amar...
Coloquei uma flor em teu jardim...


António Ramalho   

Foto de Fatima Pereira.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Joaquim Pessoa







Canção de Amor



Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
faria amor, assim, com as palavras.
Eu cantaria mesmo que tu não existisses
porque haveria de doer-me a tua ausência.

Por isso canto. Alegre ou triste, canto.
Como se, cantando, tocasse a tua boca,
ainda antes da tua presença.
Direi mesmo, depois da tua morte.

Eu cantaria mesmo que tu não existisses,
ó minha amiga, doce companheira.
Eu festejo o teu corpo como um rio,
onde, exausto, chegarei ao mar.

Sim, eu cantaria mesmo que tu não existisses,
porque nada eu direi sem o teu nome.
Porque nada existe além da tua vida,
da tua pele macia, dos teus olhos magoados.

Assim quero cantar-te, meu amor,
para além da morte, para além de tudo.

Joaquim Pessoa, in 'Canções de Ex-Cravo e Malviver'

Foto de Antonio Baptista.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Nuno Júdice








(Da) Intemporalidade


Era esse o tempo em que nenhum rosto se parecia
com o teu, a mais bela mulher do mundo, quando
era o amor que definia o cânone da beleza, e
só tu entravas nesse patamar em que a respiração
fica suspensa, os olhos não se desprendem de
outros olhos, e mesmo que tenhas partido são eles
ainda que guardo em mim, como se o olhar que nos
prendia um ao outro tivesse apagado o mundo
do meu horizonte, em que só tu cabias, mesmo que
não to tivesse dito, e só não sabia era se tu sentias
por mim o mesmo que eu sentia por ti, que de tal forma
me oprimia que nem queria saber o que tu, na verdade,
sentias, porque a verdade eram os teus olhos,
e os lábios que, ao abrirem-se, abriam o sorriso
que me abria a vida onde só tu cabias, até ao
dia em que desapareceste, para que eu não mais
te visse, até esse dia em que passaste por mim, e
só os olhos eram os mesmos, fazendo com que
anos, cidades, dias e noites, insónias e dores,
se tivessem apagado entre mim e ti, nesse breve
instante em que revi os teus olhos, e não mais te vi.
Nuno Júdice

Foto de Antonio Baptista.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

David Mourão-Ferreira








Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja. 
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


David Mourão-Ferreira

Foto de Fatima Pereira.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Hamilton Ramos Afonso








A tua boca…


A tua boca,
minha tentação
quando
olhando teu rosto
se escancara
num sorriso,
naquele gaiato sorriso
com que me trazes
enfeitiçado…
Duas tentadoras gomas
franqueiam-me o caminho,
para o seu interior,
transformando-a
no salão de baile
onde nossas linguas,
traquinas e irreverentes,
dançam
a valsa do amor…


Hamilton Ramos Afonso
In, Amor como o primeiro, Chiado Editora, 2015.

Foto de Antonio Baptista.


segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Luadiurna







Silêncios vivos
Guardo-te nas memórias
de um tempo luz....
um tempo de palavras inseguras
de silêncios vivos
a resguardar as manhãs de azul .
No amor, profanado por esfinges,
ocultam-se imagens rebatidas...
são de pedra , os olhos e as mãos...
invadem-me as palavras,
os sonhos
gemem e ardem.
Silêncios abrem-se
na noite dos poemas,
ao desabrigo das palavras .



Lua Diurna
9 de Julho de 2016 ·
isabel de carvalho sousa    

Foto de Antonio Baptista.






Paul Laurence Dunbar









asas ...




Boas noites, meu amor, porque sonhei com você.
Ao acordar sonhos, até a minha alma estar perdida -
Está perdida no mar amplo e sem maré da paixão.
Onde, como um navio, sem estranheza, está parado. Cai e ai
nas ondas selvagens ' vai.
Não existe uma voz poderosa do Mestre ainda
Esta Galileia mais nova e tempestuosa!
Os petréis tormentosos da minha fantasia voam
Em um curso de advertência em todo o verde escurecendo,
E, como um pássaro amedrontado, meu coração chora
E procuram encontrar uma pedra de descanso entre
o céu ameaçador e a implacável onda.
Não é o tempo de vida que o sofrimento anseia,
mas apenas a calma e a paz para morrer. Aqui, deixe-me descansar sobre essa única esperança,


Pois, minhas asas estão cansadas do vento,
e com seu estresse não mais pode lutar ou lidar.
Um choro apagou as minhas orelhas, meus olhos são cegos, -
Isso seria todo o espaço intermediário,
eu poderia voar e te ver cara a cara.
Eu voo; Eu busco, mas, amo, na escuridão eu busco. Volte para casa, pássaro distante, até o seu ninho de espera; Espalhe as suas fortes asas acima do mar varrido pelo vento. Bata a brisa sombria com o teu peito imperturbável Até ficar com a ala para ficar comigo. Então, deixe o passado trazer seus contos de errado; Devemos cantar a nossa doce canção conhecida, a tempestade e a dúvida e o passado não serão mais!


Paul Laurence Dunbar


Foto de Antonio Baptista.

domingo, 15 de outubro de 2017

António Ramos Rosa






aberta...
Da grande página aberta do teu corpo
sai um sol verde
um olhar nu no silêncio de metal
uma nódoa no teu peito de água clara
Pela janela vejo a pequenina mão
de um insecto escuro
percorrer a madeira do momento intacto
meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa
ó favos de sol
Da grande página aberta
sai a água de um chão vermelho e doce
saem os lábios de laranja beijo a beijo
o grande sismo do silêncio
em que soberba cais vencida flor
António Ramos Rosa  

Foto de Antonio Baptista.