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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

David Mourão-Ferreira









cinzas...
Fico, depois, branco, a teu lado,
sereno, alheio e, para cúmulo,
empedernido de cansado:
estátua jacente sobre o túmulo
do meu próprio passado.

Estaco ante o sono a recear
que por meus lábios alguém diga
o que ficou num fundo mar,
o que pertence à história antiga.

Mas, como um anjo, tu te inclinas
sobre o meu sono de acordado:
e dispersas as cinzas
do passado.

David Mourão-Ferreira

Foto de Antonio Maria.


quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Fernando Assis Pacheco






























A tua nudez inquieta-me.



Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.

Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho "um pensamento despido";
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.

E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.

Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.

Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.



Fernando Assis Pacheco

Acaso(s)... Wislawa Szymborska











Ambos estão convencidos 
que os uniu uma paixão súbita. 
É bela esta certeza, 
mas a incerteza é mais bela ainda. 

Julgam que por não se terem encontrado antes, 
nada entre eles nunca ainda se passara. 
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores 
onde se podem há muito ter cruzado? 

Gostaria de lhes perguntar 
se não se lembram - 
talvez nas portas giratórias, 
um dia, face a face? 
algum “desculpe” num grande aperto de gente? 
uma voz de que “é engano” ao telefone? 
- mas sei o que respondem. 
Não, não se lembram.  

Muito os admiraria 
saber que desde há muito 
se divertia com eles o acaso. 

Ainda não completamente preparado 
para se transformar em destino para eles, 
aproximou-os e afastou-os, 
barrou-lhes o caminho 
e, abafando as gargalhadas, 
lá seguiu saltando ao lado deles. 

Houve marcas, sinais, 
que importa se ilegíveis. 

Haverá talvez três anos 
ou terça-feira passada, 
certa folhinha esvoaçante 
de um braço a outro braço. 
Algo que se perdeu e encontrou? 
Quem sabe se já uma bola 
nos silvados da infância? 

Punhos de poeta e campainhas 
onde a seu tempo o toque 
de uma mão tocou o outro toque. 
As malas lado a lado no depósito. 
Talvez acaso até um mesmo sonho 
que logo o acordar desvaneceu. 

Porque cada início 
é só continuação, 
e o livro das ocorrências 
está sempre aberto ao meio.



Wislawa Szymborska  




quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

são reis





Sinto ter dado de mim
o melhor que tinha...
o melhor sorriso
o maior esforço
a mais sincera lágrima
tanto de tristeza como de felicidade
Nunca quis verdadeiramente saber
porque chorava
nem porque o sol tinha dias
em que não se via

Sei hoje que os melhores sentimentos
são os que imediatamente afloram aos olhos
e rompem com bravura o escuro da retina
e sei que quando se pestaneja
não é porque se está perplexo
ou deslumbrado
mas apenas porque se faz um esforço
para manter guardado nos olhos
aquilo que nos emociona
...até ser hora de adormecer de novo!....
e engolir de novo o peso dessa emoção
que nos avassala



são reis

Foto de Antonio Maria.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Nuno Júdice









abandono...



Na cama, onde o teu corpo, de costas, se abandona
aos meus olhos, e os cabelos se espalham pela almofada
és a mais bela das mulheres nuas. Os pés, sobre
os lençóis que o amor amarrotou, cruzam-se,
num breve descanso; e o rosto, de olhos
fechados, esconde o desejo que a tua brancura
me oferece, contra a parede que inscreve
o único limite do nosso amor. O braço direito
caído para o chão, agarra um vazio que encho
de palavras; e o braço esquerdo, sob os seios,
indica-me o caminho em que cada repetição
é uma descoberta. Se te voltares, abrindo os braços,
e mostrando o peito, saberei o rumo seguir,
nesta viagem em que és a proa e o vento; mas
se ficares assim, secreto retrato no atelier
do coração, apenas te peço que entreabras
os lábios, para que um murmúrio nasça
de dentro da tela. Então, cobrir-te-ei as pernas
com o lençol, espalhar-te-ei pela almofada
os cabelos, escondendo a nuca e o ombro; e
deixarei que este poema se derrame sobre ti,
ateando este fogo com que a tua nudez
me incendeia.


Nuno Júdice

Foto de Antonio Maria.

Ricardo- águialivre









Passear contigo pelos caminhos da ventura

De mão dada, queria ir passear contigo
Pelas ruelas e caminhos da felicidade
Esquecer mágoas, tristezas, a saudade
Nostalgias sofridas pela vil agrura
Poder dedicar-te poemas de candura
Abrir o coração, sussurrar o que sinto
Mostrar-te como lacrimeja o meu olhar
Como escorre verdade do meu pensar
Queria amar-te, ir passear contigo
Desbravar os caminhos da saudade
Mas hesito. Penso que não consigo
A nostalgia não nos deixa caminhar
Pelos carreiros dos sorrisos da ventura
Pelos horizontes do amor e ternura
Onde, contigo, tanto desejava estar.


Ricardo- águialivre  

Foto de Antonio Maria.

rui amaral mendes






filial...

ensinaste-me nesse tempo que antecede

o florir das magnólias
a beber nos teus olhos as palavras
que te irrompem da boca
numa manifestação intempestiva
qual incontida mas concreta floração
dessa dimensão maior única
por dentro do amor


olho o rio em frente

penso nas palmas abraçando os pés
inseguros e frágeis que
sentes escaparem-te das mãos:
a areia do tempo
escorrendo-te por entre os dedos


na tua disputa contra a irrefutável

passagem do tempo
decretaste a irrelevância de me
saberes desprovido de úbere ventre
e declaraste-me aliado em luta
que era primacialmente tua


hoje carrego as cicatrizes de um corpo 

que se expande para albergar 
um objecto cardíaco reconstruído ressuscitado
uma reflexão líquida
do rio que me embala na noite
nutrindo os ramos filiais desse amor
com que me engravidaste
consumando a metamorfose


rui amaral mendes in a noite o sangue [2016] ©




segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

rui amaral mendes









errâncias ...

escrevo a destempo

das verdades que me habitam.
conjugo sujeito, predicado
complementos

unicamente nos momentos

em que substantivos e verbos
adjectivos e pronomes
palavras isoladamente neutras

se alinham

como astros num imenso cosmos
para conferir cor ao fogo que
carrego.

se silêncios entrego

não os cuides vazios:
permanece densa ensurdecedora
a verdade da essência que carregam.

a matéria do poema, sabes!,

são palavras que desejo livres
da ditadura das grilhetas
vazias das circunstâncias,

celebrando a errância de alma minha

por dentro de veredas tuas,
temendo apenas o caos
que sobrevirá à tua ausência.


rui amaral mendes in a noite o sangue [2016] ©


Foto de Antonio Maria.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Al Berto









água

sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar nem por entre nossos
dedos de areia
sobem-me vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste humilde canto,
fico atento ao eterno silêncio do teu castelo
às vezes escuto teu cantar, raramente, é certo... mas quando cantas saem-te
nomes puros da boca e sorrisos diáfanos de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sabor misterioso
das algas
no crepúsculo expande-se o perfume a moreia frita, teu olhar é o mosto
dos nossos desejos
dançamos à roda dum mastro, saia em papel de seda bordada com
búzios... uma quadra flutua pela noite de nossos cabelos
rodopias, e os teus amores são relembrados noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas breves, junco molhado
e o mar enche-se novamente de pássaros, embarcações semelhantes a beijos
que nos percorrem de alegria

Al Berto
Foto de Antonio Maria.

Joaquim Pessoa










Estou pertíssimo do Natal e vou conseguir. Mesmo não tendo
ainda dito que te amo, hoje é um daqueles dias em que se acre-
dita em tudo, que não cheiram a tristeza, e mesmo a miséria
parece poderosamente descontraída. Gosto muito do ar, da rou-
pa que usa o vento da manhã, e até o céu está tão generosa-
mente baixo que parece querer entrar, também ele, pelas cha-
minés.
Toda a gente precisa de amor. E se não precisa só de amor, ho-
je parece não precisar de mais nada. O que tiver de acontecer,
acontece. Este não é o tempo para óptimas ideias. Está tudo
previsto. Tudo preparado. Tudo muito "isto é para si". Mas a ge-
nerosidade já não é o que era. E as crianças também não. Cres-
ceram, e agora parecem-se connosco.
Acredito que se passa alguma coisa de grave, mas hoje nem me
apetece saber o quê. Estou apaixonado pela incerteza, não que-
ro esmiuçar as coisas. Só relacioná-las. Só saber o resultado da
sua soma. E hoje, tudo somado, dá isto: amanhã é dia de Natal.
Um acontecimento tão necessário como nevar no mar.


Joaquim Pessoa

24 de Dezembro de 2017·

in ANO COMUM, 2.ª Ed.
Editora Edições Esgotadas, 2013

Foto de Antonio Maria.

sábado, 23 de dezembro de 2017

miriam lisbeth









POESIA
sonhei (te)
como quem regressa
à antepenúltima adolescência.
na magia do mar, ao sul, de Sophia,
nos jardins Impressionistas de Monet,
na genial loucura de Van Gogh,
Na rebeldia lúcida de Rimbaud,
na exortação catártica de Frida Kahlo,
e no libertino erotismo de Anais Nin
sonhei(te)
Na mais sublime e pura fantasia....
(de Sinatra a Bing Crosby.....
de James Dean a Al Pacino....
de bogart a Ingrid Bergman
de "Cecília a Tom Baxter"
Desde o Cairo a Casablanca.....)
sonhei(te)
na sensorial poesia de Neruda,
na trilogia inebriante de Carl Orff,
nas sublimes mãos de Valentina,
na dualidade Existencial de Herman Hess,
na sabedoria madura de Agustina,
e na exaltação sensual de Piazzola......
sonhei(te)
a uma só voz, ao rubro nas avenidas
no calor das emoções, no grito da Liberdade,
na inversão dos polos,
quando o sol era de prata
e, a lua refulgia, nos lençois da saudade.....
sonhei(te)
na visitação de uma aurora boreal
como quem pisa nuvens
como quem recebe a luz
de uma segunda vinda redentora
e resgatada eu me entregasse
na profundeza da alma, à superfície da pele....
fizeste-me sonhar
e eu sonhei-te
fantasma na realidade
mastro da minha ilusão.


miriam lisbeth  


Foto de Antonio Maria.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

FOTO do autor do blog










...
Com um lápis desenhei:
A felicidade,a bondade
o amor e a lealdade.

Com uma borracha apaguei:
O ódio,a guerra,a mentira e o sofrimento.
Com a felicidade do meu sonho
desenhei o desejado
apaguei o errado
e sorri...



Maria Olinda Maia

Boas festas para todos








Foto de Antonio Maria.

J. G. de Araújo Jorge


Chovia... chovia...
Naquela tarde, como chovia!
Me lembro de que a chuva caía
lá fora
sem parar,
e seu surdo rumor até parecia
um sussurro de quem chora
ou uma cantiga de embalar...


Me lembro que tu chegaste
inquieta, ansiosa,
mas logo te aconchegaste
em meus braços, quietinha...
(...enrodilhada como uma gatinha...)

E eu quase não sabia o que fazer:
se de encontro ao meu peito te deixava adormecer...
se te mantinha acordada, para seres minha...

Me lembro que chovia... chovia sem parar...
E que a chuva caía a turvar as vidraças
anoitecendo o quarto em seus tons baços...

Me lembro de que te sentia
aconchegada em meus braços...

Me lembro que chovia...
E de que era bom porque chovia,
e porque estavas ali, e porque eu te queria...
Sim, me lembro que tudo era bom...
E que a chuva caía, caía,
monótona, sem parar,
naquele mesmo tom...

Naquela tarde, amor, como chovia!
Agora, quando longe de ti, nem sou mais eu
em minha melancolia,
não posso mais ouvir a chuva cair
que não fique a lembrar tudo o que aconteceu
naquele dia...

Naquele dia...
enquanto chovia...


J. G. de Araújo Jorge
Imagem retirada do Google 



Foto de Antonio Maria.






Chovia... chovia...
Naquela tarde, como chovia!
Me lembro de que a chuva caía

lá fora
sem parar,
e seu surdo rumor até parecia
um sussurro de quem chora
ou uma cantiga de embalar...

Me lembro que tu chegaste

inquieta, ansiosa,
mas logo te aconchegaste
em meus braços, quietinha...
(...enrodilhada como uma gatinha...)

E eu quase não sabia o que fazer:

se de encontro ao meu peito te deixava adormecer...
se te mantinha acordada, para seres minha...

Me lembro que chovia... chovia sem parar...

E que a chuva caía a turvar as vidraças
anoitecendo o quarto em seus tons baços...

Me lembro de que te sentia

aconchegada em meus braços...

Me lembro que chovia...

E de que era bom porque chovia,
e porque estavas ali, e porque eu te queria...
Sim, me lembro que tudo era bom...
E que a chuva caía, caía,
monótona, sem parar,
naquele mesmo tom...

Naquela tarde, amor, como chovia!
Agora, quando longe de ti, nem sou mais eu

em minha melancolia,
não posso mais ouvir a chuva cair
que não fique a lembrar tudo o que aconteceu
naquele dia...

Naquele dia...

enquanto chovia...


J. G. de Araújo Jorge
Imagem retirada do Google  

Foto de Antonio Maria.