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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Fernando Pessoa









Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fernando Pessoa

   

Manuel Bandeira






       

Teu corpo claro e perfeito



Teu corpo claro e perfeito,

– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...

Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Quem em antigas se derrama...

Volúpia da água e da chama...

A todo o momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira

quarta-feira, 29 de abril de 2020

: FRANCISCO VALVERDE ARSÉNIO





     

Regresso... Francisco Valverde Arsénio










Adormeci sobre este poema
inacabado,
esqueci as palavras
antes de o sonho me embalar,
apertei os dedos
em dormência
onde os versos se aconchegaram.

Bate-me no peito
aquele instante nosso
e as letras formam
pequenas partículas dispersas.
Não quero mais marés,
quero-te oceano de águas puras,
quero-te no bulício dos amantes.

Adormeci sobre os olhares que trocámos
e o momento em que me sorriste.

Calada,
a minha voz sai dos sonhos
e confunde as nuvens,
é um grito de boca cerrada.

Adormeci contigo nos meus braços.


.............. Amor tardio.







       Amor tardio.

Tardiamente, no jardim sombrio,
tardiamente entrou uma borboleta
transfigurando numa manhã bonita
o deprimente anoitecer de estio.

E sedenta de mel e do rocio,
tardiamente no roseiral pousa,
pois, já se despojou da última rosa
com a primeira aproximação de frio.

E eu, que vou andando até o poente,
sinto chegar maravilhosamente,
como esta borboleta, uma ilusão;

porém,  em meu outono de melancolia,
borboleta de amor, ao fim do dia,
sinto que tarde chegas ao meu coração ...

Ilustração:  olhares.uol.com.br

terça-feira, 28 de abril de 2020

........... Depois do amor





   

Depois do amor




















Gosto quando,
depois do amor,
vens e fazes ninho dos teus braços,
a acolher-me o corpo, amante do teu afago,
e encaixas o meu
no teu cansaço.

Gosto quando te desfazes em carícias
dum enrolar e desenrolar
de dedos no meu cabelo
e me beijas, baixinho, ao ouvido
para não acordar a lassidão
que o amor nos deixou…

Gosto quando me afagas a alma nua
e guardas minhas costas no teu peito.
Gosto de beijar o teu sorriso,
quando deslizo a minha perna sobre a tua
e nossos pés se aquecem num bem-querer.

Gosto quando a tua mão não cabe na minha,
quando a quero adormecer…

TOADINHA DA HORA CERTA






   

TOADINHA DA HORA CERTA (Só vai de Covid-19 quem tem de ir. Quem não tem espera o Covid-20)




Não deve ser o que se passa lá fora, 
que vai  nos perturbar nesta hora em que é momento de amar.
Não há o que nos impeça de beber, cantar
e matar a sede com um bom vinho chileno-
o engano que nos fazem não é pequeno.
O que dizem os noticiários,
esses boletins de mortes diários,
essas tentativas de nos assustar,
meu bem, uma hora vai passar.
Já sou velho demais para me iludir.
Parte quem tem que partir.
Quem tem de morrer, morre.
A morte, quando para alguém quer sorrir,
tem mil manhas, infindáveis artimanhas,
que não podemos vencer.
Ninguém vai me convencer
que alguém já foi além de sua hora!
Chegou o tempo vai embora.
Claro que há sempre a opção
de morrer pela própria mão.
Mas, aí também, meu irmão,
vai na hora certa: acabou sua missão!

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Laura Santos /// Pele





       POEMA

Pele
Tudo acorda em mim enevoado
quando em mim te afundas e te deitas.
Um torpor, um arrepio na espinha
quando nas minhas coxas te ajeitas
em leve murmúrio abafado
numa vontade que já não é minha.
Seiva, saliva, humidade de poros,
vaga de lume batida em corpo salgado
tropicais cascatas e meteoros
oscilando em revolta navegação
como calado de barco afogado
fogo liberto em silêncio de amarração.

A minha pele adormecida
é avida de astrolábios desconcertados
de tanta sede acometida.
De gestos de ternura perfumados
de sol, chuva e frescas nuvens
de mastros de coragem levantados.

Mas tu hoje não vens.

Laura Santos
Nú sentado Picasso
A imagem pode conter: 1 pessoa


domingo, 26 de abril de 2020

Poema de Miguel Torga






      "Lembrança"
Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.

Depois,
não sei porquê nem por que não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.

Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite,
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!




Poema de Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nascido a 12 de Agosto de 1907, em São Martinho de Anta, Portugal.
Formou-se em Medicina na Universidade de Coimbra, cidade onde faleceu a 17 de Janeiro de 1995.
Considerado um dos grandes escritores portugueses contemporâneos, foi distinguido com vários prémios, nomeadamente com o Prémio Camões, em 1989.
"Lembrança"(1939) consta do livro que reúne todos os poemas do poeta: "Poesia Completa", editado em 2000 pelas Publicações Dom Quixote.

sábado, 25 de abril de 2020

Nuno Júdice






     

Photo: Chris Maher



































Nas suas saliências, o rebordo
do corpo que a mão desenha num sábio
exercício de linhas, de ângulos, de lentos
círculos que o compasso ignora,
entregue ao acaso dos dedos que
o fazem rodar, apodera-se das palavras
que descrevem o momento em que
a língua captura, num movimento de lábios,
o busto que gira como esfera sobre
os seus pólos, apoiado no centro
de onde se avistam, como hemisférios
que procuram o seu eixo, os seios
que assentam na pura superfície do branco,
e aí pousam o seu volume, imóveis,
fictícias esferas que a mão contém
quando as desenha.



Nuno Júdice

Outra poesia de Luis García Montero






     A DISCIPLINA SECRETA

A casa como o barco
em alto mar de junho,

As ruas como trens
de noite sossegada.

Estas coisas não passam no mundo.

Estou por afirmar
Que agora vivo em um livro de poemas.

Porém, se tu me olhas,
decidida a existir
desde o fundo  temperado de teus olhos
também existe o mundo.

E muito provavelmente
Eu acabarei por existir contigo.    



RHYE - Necessário











NOTA :   

                Artistas que sabem como expor a vulnerabilidade de uma maneira tão maravilhosa.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

........... Mia Couto





POESIA
para te reconhecer mudei de corpo
No avesso das palavras 
na contrária face 
da minha solidão 
eu te amei 
e acariciei 
o teu imperceptível crescer 
como carne da lua 
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes 
amei-te sem o saber 
amando de te procurar 
amando de te inventar

No contorno do fogo 
desenhei o teu rosto 
e para te reconhecer 
mudei de corpo 
troquei de noites 
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar 
à tua intermitente ausência 
ensinei às timbilas 
a espera do silêncio

Mia Couto

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Nuno Júdice






POEMA
Podíamos...

Podíamos saber um pouco mais 
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais 
da vida. Talvez não precisássemos de viver 
tanto, quando só o que é preciso é saber 
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar 
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou 
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada 
sabemos do amor.

Nuno Júdice