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domingo, 31 de julho de 2016

Pablo Neruda

intenções 
 
    



















Brincas todos os dias com a luz do Universo. 
Subtil visitadora, chegas na flor e na água. 
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto 
Como um cacho entre as mãos todos os dias. 

Desde que eu te amo não te pareces com ninguém. 
Deixa-me deitar-te entre grinaldas amarelas. 
Quem escreve o teu nome com letras de fumo nas estrelas do sul? 
Ah, deixa-me recordar-te como eras então, quando não existias ainda. 

De repente o vento uiva e golpeia a minha janela fechada. 
O céu é uma rede repleta de peixes sombrios. 
Aqui vêm dar todos os ventos, todos. 
A chuva despe-se. 

Passam em fuga os pássaros. 
O vento. O vento. 
Eu só posso lutar contra a força dos homens. 
A tempestade amontoa folhas escuras
e solta todas as barcas que a noite passada amarrou ao céu. 

Tu estás aqui. Ah tu não foges. 
Tu responder-me-ás até ao último grito. 
Encolhe-te a meu lado como se tivesses medo. 
Mas por vezes uma sombra estranha corria pelos teus olhos. 

Agora, também agora, pequena, me trazes madressilvas
e até os seios tens perfumados. 
Enquanto o triste vento galopa matando borboletas 
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa. 

Quanto te terá doído habituares-te a mim, 
à minha alma bravia e solitária, ao meu nome que todos afugentam. 
Vimos tantas vezes Vénus arder, enquanto nos beijávamos nos olhos
e sobre as nossas cabeças se destorciam os crepúsculos em leques giratórios. 

As minhas palavras choveram sobre ti numa carícia. 
Amei desde cedo o teu corpo de nácar ao sol. 
Creio-te mesmo dona do Universo. 
Trar-te-ei das montanhas flores alegres, "copihues", 
avelãs escuras, e cestas silvestres de beijos. 
Quero fazer contigo 
O que a primavera faz com as cerejeiras.



Pablo Neruda

De : maria helena guimarães

VEM MEU AMIGO
 
 
 
 
Vem, senta-te a meu lado, meu amigo
neste silêncio verde de floresta.
Senta-te aqui , quero falar contigo
do que nosso amor, tão breve , resta.
Recordas-te daquela tarde linda
em que o sol punha na terra matiz ?
Beijaste-me a boca, em ternura infinda
e nos teus braços eu fui tão feliz.
Escorria alegria dos meus olhos
quando , percorrendo só esses caminhos
sabia, que para lá desses escolhos
estavas tu , querendo meus carinhos.
Queimavam de prazer os meus sentidos
quando , inibriada nos teus olhos ternos,
nos corpos ardendo, já perdidos,
trocavamos , na tarde , amores eternos.
Agora percorro só esses caminhos.
Nos meus olhos não há já alegria,
já não há prazer, não há carinhos,
somente a dor e a nostalgia
 
 
Maria Helena Guimarães
 
do livro " Intimidades " /// 1994.
 
Nos meus olhos não há já alegria
 
 
 

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Hamilton Ramos Afonso

Vestida a tua nudez
com o calor do meu corpo desnudado,
o silêncio do quarto é apenas quebrado ...

pelo crepitar da lenha de dois corpos em combustão...
No rescaldo da fogueira resta a certeza
que ainda consigo iluminar-te o corpo...
 
 
 
Hamilton Ramos Afonso    
 
 
 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

José Carlos Ary dos Santos

Estrela da Tarde

 

 Era a tarde mais longa de todas as tardes
Que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas
Tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca,
Tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste
Na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhamos tardamos no beijo
Que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz
Que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto
Tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite,
Para haver outro dia.
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza.
Foi a noite mais bela de todas as noites
Que me aconteceram
Dos noturnos silêncios que à noite
De aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois
Corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram.
Foram noites e noites que numa só noite
Nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites
Que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles
Que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto
Se amarem, vivendo morreram.
Eu não sei, meu amor, se o que digo
É ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo
E acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste
Dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida
De mágoa e de espanto.
Meu amor, nunca é tarde nem cedo
Para quem se quer tanto!
 
 
José Carlos Ary dos Santos  

Arte: Pascal Chove - Tutt'Art@

Mia Couto

Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda ...

o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
 
 
Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'   
 
 
 

quarta-feira, 27 de julho de 2016

David Mourão-Ferreira

Poema para o fim-de-semana
 
 
 
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:...

era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
 
 
A casa, David Mourão-Ferreira  
 
 
 
 
 
 
 

Paco De Lucia & Al Di Meola


https://youtu.be/v35YhhzCrYk


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terça-feira, 26 de julho de 2016

Helena Guimaraes

PERDIDA

Vem…
Dá-me a tua mão. ...

Plano no infinito,
minhas asas
adejam na bruma do horizonte,
perla-se-me a fronte
de gotas de impotência.
Voo sem rumo
no sol que se reflecte no mar
sem encontrar o universo.
Esta incapacidade de um verso!
Este voar na fímbria das coisas!
Onde está minha nau
e meu sextante?
Perdi-me de ti.
O sol viaja para poente,
tudo tem regra, tudo é consequente.
Eu adejo as asas
Misturadas com a bruma
sem seguir coisa nenhuma.
E percorro de memória
o teu seu ausente.


DA ESCRITORA E POETISA: Helena Guimarães 



 

Francisco Valverde Arsénio

Francisco Valverde Arsénio /// ANTES DE AMAR…







Namora-me,
olha que o vento deixou de soprar
e que os nossos olhos
se apearam fora da estação.

Namora-me
como fazem as urzes
e as estevas,
como faz o lírio,
a oitava musical,
ou o azul
quando rouba o verde ao mar.

Há um lago,
uma noite,
uma mão esquecida da minha,
um poema,
um soluço,
um rio que aperta a foz.

Namora-me,
traz uma porção reticulada de chão,
um destino cravado de pontos cardeais,
um jardim de palavras incandescentes.

Namora-me no preâmbulo do teu amor.

Namora-me antes que me ames.




 

Francisco Valverde Arsénio










segunda-feira, 25 de julho de 2016

Mais uma poesia de Antonio Gala

Mais uma poesia de Antonio Gala

¿Cómo comer sin ti?                                                             
Antonio Gala

¿Cómo comer sin ti, sin la piadosa
Costumbre de tus alas
Que refrescan el aire y renuevan la luz?
Sin ti, ni el pan ni el vino,
Ni la vida, ni el hambre, ni el jugoso
Color de la mañana
Tienen ningún sentido ni para nada sirven.
Allá fuera está el mar.
Allá fuera, en el mundo, estás tú.
Comiendo tú sin mí:
Tu hambre, tu pan, tu vino y tu mañana.
Yo aquí, ante los manteles opacos
Y la bebida amarga,
Ante platos sin sabor ni colores.
Lo intento, sí, lo intento, pero cómo
Comer sin ti, ni para qué...
Tú te has llevado tu olor a bosque
Y el gusto de la vida.
Fuera están mar y aire.
Dentro, yo solo frente a la mesa puesta
Que ha perdido su voz y su alegría.

Como comer sem ti?

Como comer sem ti, sem o piedoso
costume de tuas asas
que refrescam o ar e renovam a luz?
Sem ti, nem pão, nem vinho,
nem a vida, nem a fome, nem a suculenta
cor da manhã
têm nenhum sentido nem para nada servem.
Lá fora está o mar.
Lá fora, no mundo, estás tu.
Comendo tu sem mim:
A tua fome, tua comida, teu vinho e tua manhã.
Eu aqui ante as toalhas opacas
E a bebida amarga,
Ante os pratos sem sabor nem cor.
Eu tento, sim, eu tento, mas, como
comer sem ti, nem para quê...
Tu trouxestes teu perfume ao jardim
e o gosto da vida.
Lá fora estão o mar e o ar.
Dentro eu só, com a mesa posta
que perdeu a tua voz e a tua alegria.

Para ti - de Mia Couto







Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra

....................................................
............................................................




Astor Piazzola """ Adios Nonino """

https://youtu.be/VTPec8z5vdY



Astor Piazzola interpreta "Adios Nonino" con la Sinfónica "Cologne Radio Orchestra" de Alemania.
Extraído del documental "Astor Piazzolla: The Next Tango"



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sexta-feira, 22 de julho de 2016

Raquel Lacerda



Tens flores dentro da pele
daquelas que se transformam em pétalas
no teu cabelo feito de vento
num dia quente.

Tens asas dentro dos olhos
com eles vês por detrás do céu
aquele onde te deitas
quando precisas de repousar.

Tens mãos feitas de terra
terra pura que contigo levas
e que deitas inocentemente
no canteiro dos corações.

Tens letras desenhadas nos pulsos
poemas que escreveste com os lábios
de todas as vezes que amaste
sem amar, amando sempre.

Tens a cor verde a pulsar nos ombros
onde carregas, porque és fortaleza feita de areia,
a vida toda que tens para te dar.


Raquel Lacerda

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Julián Marchena Valle-Riestra

Uma poesia de Julián Marchena Valle-Riestra



Vuelo supremo

Julián Marchena Valle-Riestra

Quiero vivir la vida aventurera
De los errantes pájaros marinos;
No tener, para ir a otra ribera,
La prosaica visión de los caminos.
Poder volar cuando la tarde muera
Entre fugaces lampos ambarinos
Y oponer a los raudos torbellinos
El ala fuerte y la mirada fiera.
Huir de todo lo que sea humano;
Embriagarme de azul... Ser soberano
De dos inmensidades: mar y cielo,
Y cuando sienta el corazón cansado
Morir sobre un peñón abandonado
Con las alas abiertas para el vuelo.
 
 
 
 

VOO SUPREMO
 
 
Quero viver a vida aventureira
dos errantes pássaros marinhos;
não ter, para ir a outra ribeira,
a prosaica visão dos caminhos.
Poder voltar quando a tarde morra
entre fugazes raios ambarinos
e opor aos velozes torvelinhos
a asa forte e o olhar de fera.
Fugir de tudo que seja humano;
embriagar-me de azul...ser soberano
de duas imensidões: o mar e o céu.
e quando sentir o coração cansado
morrer sobre um penhasco abandonado
com as asas abertas para voar, feito um véu!

Mário Césariny

Estação



Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça


Mário Cesariny  





quarta-feira, 20 de julho de 2016

são reis

Há qualquer coisa de belo
nos teus olhos fechados
e não é o castanho da tua pupila
nem a cor da tua iris
...
Há qualquer coisa de mágico
nesse teu semi sorriso
nesse teu ar abandonado
com que sentes o vento bater-te no rosto
Talvez seja apenas impressão minha
mas eu diria que esperas ansiosa essa brisa nocturna
que todos os dias te acaricia
que todos os dias delicada te toca
como só algo doce consegue tocar alguém
quase imperceptível
mas ao mesmo tempo com tamanha paixão
como se tivesse dedos
e todos eles mergulhassem dentro de ti ao mesmo tempo
virando-te de dentro para fora
Há algo de belo e misterioso
nesse teu pescoço de garça
altivo e majestoso
arfando com a delicadeza de um nenúfar
que se abre e fecha conforme o sol lhe bate
E as palavras que sufocas na garganta?!
que te cortam a respiração
e te ferem como punhais ensaguentados
com flores rubras no seu gume
aciduladas e altivas
tão capazes de te roubar o ultimo sopro
como te devolver à vida de um só golpe
E aqueles segundos que te separam
da vida e da morte
em que voluntariamente te ofereces
são tudo o que eu preciso para saber
que em ti tudo é intenso e verdadeiro...
...porque é assim que deve ser!...

 
 

 são reis    
 
 
 

terça-feira, 19 de julho de 2016

Edgardo Xavier

O teu amor era o Sol da minha vida.
Iluminava, aquecia.
Depois, implacável,
impediu-me de florir.
Edgardo Xavier














 

Isabel De Sousa

QUANDO TE VI.....

quando te vi
acendi todas as estrelas do espanto e do prazer
abri todos os sorrisos iluminados pelo teu olhar
corri as cortinas do tempo amarrotadas no sotão do passado

quando te vi
abri todas as portas derrubei todas as barreiras
tirei do armário o vestido de arminho e as flores de laranjeira
e
adornei-me de pureza na pueril inocência das crianças
quando te vi
tatuei o teu nome na alma
e é lá que ainda te guardo
ao abrigo do meu sentir

Isabel De Sousa (luadiurna)    






segunda-feira, 18 de julho de 2016

Pedro Tamen

Arder
...
Ardes-me no peito onde a custo
o meu amor perpassa, e vai até
às loucuras do corpo
e às agruras da alma.
Ardes-me no minuto, no segundo,
na hora amaciada por olhos entrevistos,
ardes-me no sangue obstruído
e na certeza muda que me diz
que o coração existe.

Pedro Tamen  
 
 
  
 
 

 
 
 
 
 
 

domingo, 17 de julho de 2016

Joaquim Pessoa

Pensamento
Conta Comigo Sempre
...
Conta comigo sempre. Desde a sílaba inicial até à última gota de sangue. Venho do silêncio incerto do poema e sou, umas vezes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes equilíbrio, outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, recordo-me de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual consigo distinguir com clareza as flautas, os violinos, o oboé.
O sonho é, e será sempre e apenas, dos vivos, dos que mastigam o pão amadurecido da dúvida e a carne deslumbrada das pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos com uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se aninha no coração e se alimenta de amor, esse amor acima do desejo, bem acima do sofrimento.
Conta comigo sempre. Piso as mesmas pedras que tu pisas, ergo-me da face da mesma moeda em que te reconheço, contigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir, contigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repartirei até o que é indivisível. Tu sabes onde estou.
Sabes como me chamo. Estarei presente quando já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a hora decisiva e não encontrares mais esperança, quando a tua antiga coragem vacilar. Caminharei a teu lado. Haverá, decerto, algumas flores derrubadas, mas haverá igualmente um sol limpo que interrogará as tuas mãos e que te ajudará a encontrar, entre as respostas possíveis, as mais humildes, quero eu dizer, as mais sábias e as mais livres.
Conta comigo. Sempre.
 
 
 
Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum' 
 
 
 

sábado, 16 de julho de 2016


aspiras para dentro do peito
o âmago primordial do homem
como se trouxesses um cigarro preso nos lábios
decantando essências no fogo vivo de cada inspiração

entregas o fumo à noite como se
desmentisses a queda dos graves
e deitas as cinzas sobre o chão
como se fossem reminiscências da efemeridade



rui amaral mendes in do fundo do silêncio

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Edgar Alfaro Chaverri


YO PECADOR
...
Eu pecador
Eu pecador confesso que te amo
como um louco que não alcança o fogo
o incêndio dos teus pelos ....
O inferno se coalha entre as mãos
e não há céu que sem ti me reconheça ...
Brasas brotam de teus olhos
e não há lua para acompanhar meu gemido ...
A noite queima velas invisíveis
e um anjo com teu nome
me beijou .....
 
 
 
 
Edgar Alfaro Chaverri    
 
 
 
 
 

quinta-feira, 14 de julho de 2016

José Jorge Letria

Às vezes apetece-me começar a viver uma outra vida,
com outro rosto, outra morada, outra identidade,
sem contudo deixar de ser eu, sempre e só eu,
e acreditem que gostava de ficar sentado numa esplanada,
numa cadeira branca de palhinha, a ver-me ser outro...

sem deixar de ser eu, com os mesmos tiques,
com a mesma exaltada paixão pelo timbre da palavra,
com o mesmo vício dos livros, que é o único
que verdadeiramente tenho e que me custa os olhos da cara.
Mas é impossível, paciência. Resta-me a transfiguração
naquilo que escrevo, compulsivamente, como um asmático
a tentar libertar-se do ar que lhe oprime o peito.
E para dizer a verdade, que é coisa que a poesia
não tem necessariamente que dizer, não sei ao certo
o que poderia ser se chegasse a ser outro.
O que faria eu sem outra identidade? Seria astronauta,
veterinário por amor aos bichos, corretor de bolsa
transformado em pintor impressionista como o meu querido
Gauguin, cinzelador de metais raros e preciosos,
ourives de corte, cronista das tragédias sociais?
Creio que nenhuma das hipóteses me agradaria
e voltaria a ser aquilo que sempre fui,
heterónimo de mim mesmo, a fugir de mim aos ziguezagues,
cobra largando a pele dos ódios e dos medos
sem se importar com a estação em que a mudança se opera
(e para que a rima não falte), seja ela Inverno ou Primavera.


José Jorge Letria, Produto Interno Lírico
 
 
 
 

Helena Guimaraes

Esta saudade está
a transformar-se em ânsia
que me dói,
me corrói,
...
me faz cair em fantasia
quando,ao nascer do dia,
deitada na minha cama,
relembro as tuas mãos
a explorar-me o corpo,
o teu olhar absorto,
perdido dentro do meu,
tua boca no meu peito,
e todo aquele teu jeito
de procurares o carinho,
o cabelo em desalinho
macio entre os meus dedos,
esvaziando os meus medos
destruindo a solidão!
Amo-te!!!
 
Helena Guimarães (No livro:CONTIGO à LAREIRA)
 
 
 

quarta-feira, 13 de julho de 2016

MIGUEL TORGA

 
IDÍLIO
 
 
 
Lírica, a tarde cai...
Com secura nas folhas;
Lírica, a minha vista vai
A olhar o que tu olhas...
Oliveiras de sonho
A ver nascer a lua...
Liricamente ponho
A minha mão na tua.
 
 
MIGUEL TORGA
 
in DIÁRIO I, (7ª ed. Coimbra, 1989)    
 
 
 
 

Isabel De Carvalho Sousa

acende-se a magia
na cintura dos meus olhos...
quando te procuro ao entardecer
nessa linha ténue
que o horizonte desenha
antes do anoitecer
acende-se a magia
na cintura da noite
num braçado de estrelas
perfumando os risos
acariciando os corpos
até ao amanhecer
acende-se a magia
na cintura das palavras
no doce engano que é
perseguir um sonho tecido
nas franjas da ilusão
tantas vezes adiado
outras tantas consentido
acende-se a magia
na cintura dos teus olhos
emoldurando a noite e
os sonhos e os risos e
os corpos das estrelas
 
 
isabel sousa    
 
 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

são reis

Quero o espanto delineado no olhar
a boca entreaberta
pasma
incredulamente pasma
Quero o abismo...

o sismo
o tremor que refulge
na boca que apetece
Quero a palavra que se silencia
no beijo que se antecipa
quero a boca pela boca
ainda que trôpega e louca
quero a sofreguidão de um veneno lento
mas que me consola
que me deixa feliz...ainda que moribunda
Quero o beijo!
nada mais que o beijo
e que se antecipe em mim o abismo...




são reis    




PABLO NERUDA

POESIA
 
Para o meu coração basta o teu peito
para que sejas livre as minhas asas.
 
 
 
Soneto LXVI
 
    
«No te quiero sino porque te quiero
y de quererte a no quererte llego
y de esperarte cuando no te espero
Pasa mi corazón del frío al fuego
Te quiero sólo porque a ti te quiero,
te odio sin fin, e odiándote te ruego.
y la medida de mi amor viajero
es no verte y amarte como un ciego,
Talvez consumirá la luz de enero,
su rayo cruel, mi corazón entero,
roubándome la llave del sosiego.
En esta historia sólo yo me muero
y moriré de amor porque te quiero,
porque te quiero, amor, a sangre e fuego.»
 
 
PABLO NERUDA
 
 
 
 
 
 
 

domingo, 10 de julho de 2016

Maria do Rosário Pedreira

Facto...
Nunca te esqueci - é este um amor maior ...
que atravessa a vida e resiste à cicatriz
do tempo. O que ontem me disseste agora
o ouço, como se nada tivesse interrompido
a magia do instante em que as nossas bocas
se aguardavam na distância de um beijo e
o olhar tocava o corpo antes da mão. Se
hoje vieres por esse livro que deixaste (e cuja
lombada acariciei todos os dias que durou a tua
ausência como uma nesga de sol acaricia
um rosto no Inverno), encontrarás a sopa a fumegar
na mesa, e a camisa engomada no cabide, e os
lençóis da cama imaculados, e um corpo pronto
para qualquer aventura - e ainda o cão deitado
à porta, à tua espera, como na véspera de partires.
Porque os anos não contam para quem assim ama.
 
 
 
Maria do Rosário Pedreira   
 
 
 
 

isabel de carvalho sousa

 
 

 ​Silêncios vivos


 Guardo-te nas memórias
 de um tempo luz....
 um tempo de palavras inseguras
 de silêncios vivos
 a resguardar as manhãs de azul pintadas.
 No amor, profanado por esfinges,
 ocultam-se imagens rebatidas...
 são de pedra , os olhos e as mãos...
 invadem-me as palavras,
 os sonhos
 gemem e ardem.
 Silêncios abrem-se
 na noite dos poemas,
 ao desabrigo das palavras .

isabel de carvalho sousa

sexta-feira, 8 de julho de 2016

rui amaral mendes

visões



















perco-me na visão 
desse teu corpo lânguido
que agora se entrega ao meu olhar.

nas sombras que se projectam
vislumbro o erotismo de dois corpos
que se compreendem,
autenticam,
por entre abandonos
às linguagens idiossincráticas
e à natureza metafísica e intemporal
do desejo.

lábios tumescidos e ardentes
aspiram a tez láctea que reveste
quem és.

cabelo seríceo cai
sobre teus ombros afagando docemente
o rosto de menina carente
onde desponta a malícia da
feminilidade felina de um olhar.

o contorno delicadamente decalcado
dos teus seios:
montes e vales de alabastro
onde me perco
rumo à origem do mundo.

por fim 
o cheiro do teu corpo depois do amor:
eu em ti, tu em mim,
um no outro.


rui amaral mendes in triptico [2016]

Poema de Vóny Ferreira

A Dama da Noite
Nessa noite fria e por ela subvertida
As janelas dos olhos queriam fechar-se
Contudo…...

Vestiu-se de flores de laranjeira
E partiu sem rumo, pelas sombras da noite.
A noite vigiou-a e deixou-a sozinha
Entre uivos noturnos de lobos famintos
Contudo…
Ela gélida, tremia por dentro
Porque ansiava um amor verdadeiro!
Apareceu como uma nuvem
O primeiro homem,
beijou-a...
Ela mordeu-lhe os lábios,
E incrédula correspondeu.
Descalçou-se e abraçou-o
Deixou que a penetrasse,
Com a fome de alguém que já morreu…
Um segundo homem perguntou-lhe o nome
Ela viu o sol no seu sorriso
Falou-lhe da solidão que consome
Ele embriagado ao ouvi-la, adormeceu.
Um terceiro estendeu-se uma nota
Ela apunhalou-o com o seu olhar frio
Ele fingindo afagou-lhe os cabelos
E ela gemendo, então… consentiu.
Morreu mais um pouco
Enquanto o amava
Contudo...
Havia um vulcão em seu corpo,
Ela só queria o luar
de uma companhia
E encontrar nessa noite,
Um amor verdadeiro!


Poema de Vóny Ferreira    





 

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Ana Goês

 
 
Devagar...
E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado ...

numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar

devagar

Ana Goês 
 
 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

J. G. de Araújo Jorge

Chovia... chovia...
Naquela tarde, como chovia!



Me lembro de que a chuva caía
lá fora
sem parar,
e seu surdo rumor até parecia
um sussurro de quem chora
ou uma cantiga de embalar...
Me lembro que tu chegaste
inquieta, ansiosa,
mas logo te aconchegaste
em meus braços, quietinha...
(...enrodilhada como uma gatinha...)
E eu quase não sabia o que fazer:
se de encontro ao meu peito te deixava adormecer...
se te mantinha acordada, para seres minha...
Me lembro que chovia... chovia sem parar...
E que a chuva caía a turvar as vidraças
anoitecendo o quarto em seus tons baços...
Me lembro de que te sentia
aconchegada em meus braços...
Me lembro que chovia...
E de que era bom porque chovia,
e porque estavas ali, e porque eu te queria...
Sim, me lembro que tudo era bom...
E que a chuva caía, caía,
monótona, sem parar,
naquele mesmo tom...
Naquela tarde, amor, como chovia!
Agora, quando longe de ti, nem sou mais eu
em minha melancolia,
não posso mais ouvir a chuva cair
que não fique a lembrar tudo o que aconteceu
naquele dia...
Naquele dia...
enquanto chovia...



J. G. de Araújo Jorge  







 

Florbela Espanca

Inconstância
 
 
 
Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava...

Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...
 
 
 
Florbela Espanca