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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA


Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.
 
 MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
 
 

são reis


Esta noite quero escrever um poema na tua pele
que seja feito de palavras e gemidos
de gestos que vêm de dentro
de ternura pura

Esta noite quero que as palavras se escrevam
e permaneçam escritas
muito para além do toque e dos beijos
das chegadas e dos abraços

e das portas de saída

Esta noite quero que os nossos corpos
sejam e saibam a poesia


são reis

Joaquim Pessoa Portugal /// Estou Mais Perto de Ti porque Te Amo

Poema
Joaquim Pessoa Joaquim Pessoa Portugal n. 1948 Poeta


  Estou mais perto de ti porque te amo.
Os meus beijos nascem já na tua boca.
Não poderei escrever teu nome com palavras.
Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.

Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.
Quero a tua boca aberta em minha boca.
E amo-te como se nunca te tivesse amado
porque tu estás em mim mas ausente de mim.

Nesta noite sei apenas dos teus gestos
e procuro o teu corpo para além dos meus dedos.
Trago as mãos distantes do teu peito.

Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.
Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.
E eu estou perto de ti porque te amo.

Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'

Fernando Campos de Castro PERGUNTAR POR TI


E porque hoje é dia da SAUDADE…


Pergunto ao vento para onde irás
Quero saber por onde andarás

Tenho silêncio, solidão, mais nada
Pergunto ao vento se tu és verdade
Chamo o teu nome e vem a saudade
Vestir de frio esta madrugada

Pergunto à vida se foste ilusão
Procuro em sonhos pela tua mão
Sinto o vazio de ficar sozinho
Quero saber onde estão teus beijos
Para acalmar estes meus desejos
Na noite fria deste meu caminho

Pergunto às ruas por onde passamos
Aos sonhos loucos que os dois sonhamos
Se foi verdade tudo o que eu senti
Pergunto às horas que nós conhecemos
Às coisas boas que os dois vivemos
Mas todas dizem não saber de ti

Pergunto à noite como conseguir
Adormecer sem me decidir
Quebrar o medo que existe em nós
Pergunto à sombra desta madrugada
Porque não voltas nem me dizes nada
E sinto saudade a soluçar na voz


Fernando Campos de Castro

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

(Adriana Calcanhoto) /// Cantada (Depois de ter você)



Depois de ter você,
pra quê querer saber que horas são?
Se é noite ou faz calor,
se estamos no verão,
se o sol virá ou não,
ou pra quê é que serve uma canção como essa?
Depois de ter você, poetas para quê?
Os deuses, as dúvidas,
pra quê amendoeiras pelas ruas?
Para quê servem as ruas?
Depois de ter você...

(Adriana Calcanhoto)

PERCETO II




(Talvez Obsessões Prazeirosas fosse um bom título)


PERCETO II

Sempre estive, estou errado,
Porém, ser certo é monótono.

Troco o tônico e átono,
As pernas e os bares sem pena.

A pena que me deram, ser poeta,
Me pesa nas pálpebras cansadas.

A minha amada trata o sexo
Como supérfluo e o essencial

Seria tê-la, três vezes ao dia,
Como me receitou o doutor

Que sabe da fraqueza imensa
Do meu pobre e velho coração.

Faz assim não! Faz! A poesia,
Como o sexo, não me dá nenhuma paz!


(Do livro A Alquimia da Vida, Editora Castanheira/Printer Laser, 1999
).

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Ary dos Santos /// Desespero



Desespero



Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o espermen que te dou, o desespero.



Ary dos Santos

Castro Alves /// Horas de Saudade



Horas de Saudade



Tudo vem me lembrar que tu fugiste,
Tudo que me rodeia de ti fala.

Inda a almofada, em que pousaste a fronte
O teu perfume predileto exala

No piano saudoso, à tua espera,
Dormem sono de morte as harmonias.

E a valsa entreaberta mostra a frase
A doce frase qu'inda há pouco lias.

As horas passam longas, sonolentas...
Desce a tarde no carro vaporoso...

D'Ave-Maria o sino, que soluça,
É por ti que soluça mais queixoso.

E não vens te sentar perto, bem perto
Nem derramas ao vento da tardinha,

A caçoula de notas rutilantes
Que tua alma entornava sobre a minha.

E, quando uma tristeza irresistível
Mais fundo cava-me um abismo n'alma,

Como a harpa de Davi teu riso santo
Meu acerbo sofrer já não acalma.

É que tudo me lembra que fugiste.
Tudo que me rodeia de ti fala...

Como o cristal da essência do oriente
Mesmo vazio a sândalo trescala.

No ramo curvo o ninho abandonado
Relembra o pipilar do passarinho.

Foi-se a festa de amores e de afagos...
Eras ave do céu... minh'alma o ninho!

Por onde trilhas um perfume expande-se
Há ritmo e cadência no teu passo!

És como a estrela, que transpondo as sombras,
Deixa um rastro de luz no azul do espaço...

E teu rastro de amor guarda minh'alma,
Estrela que fugiste aos meus anelos!

Que levaste-me a vida entrelaçada
Na sombra sideral de teus cabelos!...




Castro Alves

Manuel António Pina /// Amor como em casa


 


Amor como em casa
 
 

Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.

 Faço de conta que 
não é nada comigo. Distraído percorro 
o caminho familiar da saudade, 
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
 Devagar te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no 
amor como em casa.


Manuel António Pina

Florbela Espanca /// Noite de saudade

Noite de saudade




 
 
A Noite vem poisando devagar
Sobre a Terra, que inunda de amargura...
E nem sequer a benção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!

Porque és assim tão escura, assim tão triste?!
é que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!
 
 
 
 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Capítulozinho sobre o Amor



Não há nada melhor ou não conheço
Que um corpo se fundir em outro corpo, de forma doce,
Profunda e, se possível, bem devagar...
Com um improvável e cruel carinho
Que se converta aos poucos em pranto e prazer
Que lembra, no seu êxtase, o morrer...
Toda alegria nasce com o sofrer:
Sabe meu coração, que transparente,
Viveu do amor suas loucuras mais sensatas;
As dores doces, os gozos tão dourados,
O cinza dos adeuses, o fluir da prata
E nas suas chamas, como um Titanic humano,
Viu o naufrágio de todos os seus planos,
Ainda que sabendo que, na vida,
Amar é o melhor dos desenganos.


pouco a pouco...



Pouco a pouco…
Chegaste vindo do nada, do acaso
Um sorriso rasgado, num rosto sereno
E pouco a pouco foste me deixando
Derrubar as muralhas que te envolviam
E foste-me acolhendo nos teus braços.

Pouco a pouco…
Começámos a caminhar  lado a lado
Deste-me a mão, soltámos a tristeza
Envolta num manto de seda transparente
Caminhamos  sem destino ou direção
Guardamos cada toque, cada sorriso
Sonhamos com o que ainda não vivemos


Pouco a pouco…
 Unimos as  nossas vidas,  e  alegrias
Unimos as tristezas  e as dores
De uma vida passada e presente
Trocada em cada palavra tua ou minha
Caminhamos a um passo ritmado
Ao sabor do tempo e do vento
Do sonho  construído em cada sorriso
Em cada beijo trocado , pouco a pouco..
Aprendi o sabor de um novo amor!
  tulipa

domingo, 26 de janeiro de 2014

Lou Witt

Aquele amor
Flor de laranjeira
Pitanga madura
Sol de Primavera

Aquele amor
Nascido na idade dos sonhos
Onde a juventude era toda festa
E colhia as flores antes dos frutos

Eram de algodão doce os beijos
E de promessas inocentes
As mãos que se juntavam

Aquele amor
Passado
Guardado
Para sempre
Na mais bela lembrança

Lou Witt

sábado, 25 de janeiro de 2014

Archibald MacLeish /// Uma Imagem, Um Poema, Uma Música ...





Um poema deve ser palpável, silencioso,
como um fruto redondo.

Mudo
como os velhos medalhões ao toque dos dedos.

Silente
como o gasto peitoril de uma janela em que cresceu o musgo.

Um poema deve ser calado
como o voo dos pássaros.

Como a lua que sobe,
um poema deve ser imóvel
no tempo,

deixando, memória por memória, o pensamento,
como a lua detrás das folhas de inverno;

deixando-o como, ramo a ramo, a lua solta
as árvores emaranhadas na noite.

Um poema deve ser imóvel
no tempo
como a lua que sobe.

Um poema deve ser igual a:
não a verdade.

Por toda a história da dor,
uma porta franqueada e uma folha de ácer.

Para o amor,
as gramíneas inclinadas e duas luzes sobre o mar.

Um poema deve ser,
e não significar.


Archibald MacLeish (1892-1982)
Tradução: Péricles Eugénio da Silva Ramos






José Régio /// Soneto de Amor



Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!


(José Régio)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Nara Rúbia Ribeiro /// DOR DA NOITE



Quando o vento sua,
O orvalho recobre as paisagens de mim
E reinvento tua mão

Na demora do adeus.

Mas se a chuva ora definha
O meu peito sangra memórias que não tenho
E escrevo-te um poema
Como se regressasses.

Desenho-te, como se existisses
E suplico por tua sombra
Como se o som do teu peito
Os meus olhos cegassem.


Nara Rúbia Ribeiro
 
 

Suzana Martins

Abstrato é querer me entender,
e nesse entender, se perder ainda mais em mim.

Caminhar sobre os meus trilhos
é ter certeza de retorno algum.
É chegar no final, deitar na estrada,
e sem mais explicações
perceber que tudo é questionável e inconstante.

Sou inconstante como as estações que vem e vão.
Sou um vento leve, calmo, mas também tempestuoso.
Sou assim: tão perto e longe de mim…
Sou estrada distante, viajante…

Incógnita!

Em mim: sempre restarão sonhos não realizados,
não sonhados, sem remorsos pra sonhar.
Eu sou um misto desses sonhos,
dessa estrada sem fim
e nunca estou disponível para mim…

Abstrato é ter saudade sem fim.
Concreto é chorar com saudade de mim…

E agora que chego ao fim,
essas palavras só fazem sentido para mim…
Porque é isso que escrevo:
linhas tortas, mortas, expostas.

Minhas palavras são vítimas das confusões,
e dos meus sentimentos.
Por isso fico a devanear assim…
E ao final de tudo,
eu não entendo nada de mim.



Suzana Martins
 

MJSpeglich /// QUERIA


Como eu queria poder
Transformar-me num pássaro
Bateria asas e iria te ver.

Não importa com quem estejas
Nem onde se encontre.
O importante é que te veria
Antes do anoitecer.

Como eu queria ser o vento
Sairia do meu pensamento
Meu desejo viraria realidade
Apaziguaria meu coração
E a dor da minha saudade.


MJSpeglich

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Helena Guimarães /// A VIDA PAROU

A VIDA PAROU
 A VIDA PAROU
Descrição:

O sol brilha cálido
lá fora.
Hoje não o sinto!
Está tão distante
o velho que lê o jornal
junto ao quiosque.
A vida parou ontem.
Exactamente àquela hora.
Hoje é o vazio
e apesar do sol
está frio.
Vejo os outros,
longínquos,
a fruir a vida
sem tempo.
Eu estou dentro de mim,
com uma réstia de ti
no sentimento,
o teu olhar
no pensamento,
a tua imagem,
esbatida,
a cortar-me  a ligação
com a vida..


H.G..Janeiro2003.

Vinícius de Moraes //// Soneto ao caju

Soneto ao caju



Amo na vida as coisas que têm sumo
E oferecem matéria onde pegar
Amo a noite, amo a música, amo o mar
Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo.

Por isso amo o caju, em que resumo
Esse materialismo elementar
Fruto de cica, fruto de manchar
Sempre mordaz, constantemente a prumo.

Amo vê-lo agarrado ao cajueiro
À beira-mar, a copular com o galho
A castanha brutal como que tesa:

O único fruto – não fruta – brasileiro
Que possui consistência de caralho
E carrega um culhão na natureza.

Vinícius de Moraes

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Machado de Carlos /// Uma Viagem Celeste



Vem, preciso de ti... Noites e noites... 
Nunca esqueço das horas; ─ Nossas farras! 
Inda tenho as mil marcas das tuas garras 
─ Guardei os apetites dos açoites... 
  
Na história;  ─ Dois corpos, no breu, afoitos 
Acenderam os pavios da Lua clara! 
... e cantávamos o "Tema de Lara" 
na incrível cena de amor; ─ Beijos loucos!... 

... Lindo "strip-tease" ao som; ─ Rico bolero, 
fomos astros do Céu, no mundo eterno... 
Saboreamos os cálices do encanto!... 

Vivemos, na safra:  ─ O melhor da festa... 
... ecoaram hinos;  ─  Vozes da floresta... 
... e aos ouvidos!...  ─ À récita de: ─ Eu te Amo!...

Machado de Carlos
 
 
 

São reis

És o declive da minha insónia
o nó que me cala no sangue
que me deixa exangue
de tanto querer respirar

És o ar que respiro
o que digo e não digo
meu porto de abrigo
minha escuna

minha claridade ofuscante
minha luz diurna
meu mirante

E de tudo aquilo que conheço
é por ti que estremeço
e contra tudo o que é natural
és minha luz, meu vento
minha raíz, meu sustento
meu rio, meu eterno caudal

Minha boca é tão nua
sem a tua por perto
Troco o dia pela lua
troco a rosa do deserto
por uma simples flor tua


são reis
 

____Joe Luigi /// Porque será...




















 
Porque será que ainda
Tu me deixa sem fôlego
quando pensando em ti, percebo
que a tua ausência ainda é tão
presente em mim.
Esta música que agora ouço baixinho,
tem você, eu juro!
Parece escrita por você para mim.
Cada palavra, lembra-me você.
O que me proporciona uma viagem,
e divago me perdendo em ti.
E nos meus devaneios, sinto a
brisa do vento tocando suavemente 
o meu rosto em forma de beijos seus.
Uma saudade imensa me invade,       
olho fixo para o vazio, procuro-a.
Vejo você me sorrindo, que loucura
e sorrio triste.
Eu sei, você já me esqueceu.

Mas eu te amo ainda, sinto uma
uma vontade quase insana de você. 
Porém, eu estive pensando que:
Seria um pecado eu entrar assim
nesse seu momento.
É como eu sequestrar a sua alma
e isto, eu não posso fazer.
A música acaba e com ela os meus
sonhos.
Fica apenas esta vontade de você.
 
____Joe Luigi

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

(Ary dos Santos) //// Original é o poeta




Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema

como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer
.
 (Ary dos Santos)

Foto: Original é o poeta

(Ary dos Santos)

Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

Fiama Hasse Pais Brandão /// Da voz das coisas




Só a rajada de vento 
dá o som lírico 
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas 
pelo amor das outras 
têm voz.


 Fiama Hasse Pais Brandão

Imagem retirada do Google

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Mia Couto /// Para Ti








Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo


Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre


Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Imagem da Internet.