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terça-feira, 21 de abril de 2020

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”






     Carta (Esboço)
Lembro-me agora que tenho de marcar um 
encontro contigo, num sítio em que ambos 
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma 
das ocorrências da vida venha 
interferir no que temos para nos dizer. Muitas 
vezes me lembrei de que esse sítio podia 
ser, até, um lugar sem nada de especial, 
como um canto de café, em frente de um espelho 
que poderia servir de pretexto 
para reflectir a alma, a impressão da tarde, 
o último estertor do dia antes de nos despedirmos, 
quando é preciso encontrar uma fórmula que 
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É 
que o amor nem sempre é uma palavra de uso, 
aquela que permite a passagem à comunicação ; 
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, 
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós 
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio 
ser, como se uma troca de almas fosse possível 
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e 
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas 
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, 
isto é, a porta tinha-se fechado até outro 
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então 
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem 
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar 
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos 
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que 
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por 
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia 
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores 
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos 
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que 
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí 
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, 
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo 
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.


Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

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