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terça-feira, 22 de setembro de 2020

Carta de Outono | Nuno Júdice | in, A Condescendência do Ser

 




                        ouço-te bater por dentro de mim


Pensarás que não te escrevi antes porque o Verão
consome a energia da alma com um apetite solar; e
porque as tempestades do crepúsculo incendiaram as
palavras com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu
ouço aquelas aves que gastaram as asas na travessia
do espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso
nas traseiras do invisível, onde um deus culpado
se esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos
anjos enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar;
agarram-se aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde,
gritam em direcção às nuvens com os olhos secos e
sem medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas
verdes como as folhas perenes do norte. Então,
ouço-te bater por dentro de mim, embora estejas morto;
e os teus dedos tenham perdido a força antiga que
desafiava a sombra. Procuro uma entrada no átrio
desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos
perdendo-me do silêncio na insistência dos passos.
O passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me
neste bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros;
o teu amor gastou-se com um breve brilho de
isqueiro. Saio sem desejo dos desertos de Outubro
e Novembro, arrastando o Outono com os pés, nas planícies
provisórias de um esquecimento de estações.

Carta de Outono | Nuno Júdice | in, A Condescendência do Ser

1 comentário:

mariferrot disse...

Estações, um baralho de cartas viciado, onde as tristezas predominam e os trunfos são poucos ou nenhuns para o naipe do Outono; um tempo suave e doce, dono de um crepúsculo que nasce pela manhã e que mostra os caminhos tapados pelas folhas caídas das arvores desnudadas, que nos convidam a pensar e a colher do antigo somente o que não esmorece !!!... <3


Beijo Conde