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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

POESIA / Nuno Júdice






Photo: Sergio Larraín


As transformações por que a alma passa 
são análogas às daquela árvore que tenho no quintal. Já a vi despida, 
ébria, numa ânsia de líquidos 
e nuvens. Depois vi-a 
resplandecente de folhas, pesada, 
impondo-me o respeito dos seus frutos - como 
se eles não estivessem ali para que eu os colhesse antes que 
apodreçam, caídos no chão, ou os pássaros os comam! E 
pergunto-me: que relação existe entre 
essa árvore nua do inverno, e a árvore sob o verde manto 
do verão? Serão os mesmos ramos os que se estendem na sua despida 
fragilidade, como se nada os prendesse no ar, e os que ostentam 
a jóia de flores e rebentos, com o seu ar primaveril? 

Ao cortá-los, para que não tapem o sol às plantas que têm de 
nascer à sua volta, penso nesta comparação 
entre a árvore e a alma; e em como, nas coisas da natureza, não se liga 
a sentimentos, deitando fora o que é inútil para que o novo possa ter
o seu lugar. Mas uma alma não se 
deixa podar, como a árvore. O seu crescimento faz-se sobre si mesma; não 
perde as folhas de um inverno para o outro; e as novas flores e frutos crescem 
sobre outras flores e frutos, juntando-se nessa mistura 
que obriga o homem a decidir, a ter de esquecer partes da sua vida, 
mesmo que saiba que a alma guarda tudo, e que um dia tudo voltará 
ao de cima. 

O que não é diferente, numa alma ou 
numa árvore, são os pássaros: tanto esses pardais que o outono leva, e 
o calor volta a trazer, como as aves abstractas que cantam, por vezes, por dentro 
da alma, no verão como no inverno. Só que estas, nenhuma fisga 
as enxota para o outro lado do muro. São as aves do poema. Voam 
num céu de palavras, como se tivessem todo o tempo do mundo 
para atravessar o horizonte. O poeta, esse, colecciona-as na página: presas 
como borboleta do entomologista louco, debatem-se numa agonia de asas (sim tal 
como esse pássaro visado pelo caçador, 
a ave da alma é tão mortal como o sopro do amor). 

Então, 
dou-lhes a sua ração diária de versos, alimentando-as 
com a tua imagem.  E elas 
sobrevivem.



Nuno Júdice

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