Photo: Sergio Larraín
As transformações por que a alma passa
são análogas às daquela árvore que tenho no quintal. Já a vi despida,
ébria, numa ânsia de líquidos
e nuvens. Depois vi-a
resplandecente de folhas, pesada,
impondo-me o respeito dos seus frutos - como
se eles não estivessem ali para que eu os colhesse antes que
apodreçam, caídos no chão, ou os pássaros os comam! E
pergunto-me: que relação existe entre
essa árvore nua do inverno, e a árvore sob o verde manto
do verão? Serão os mesmos ramos os que se estendem na sua despida
fragilidade, como se nada os prendesse no ar, e os que ostentam
a jóia de flores e rebentos, com o seu ar primaveril?
Ao cortá-los, para que não tapem o sol às plantas que têm de
nascer à sua volta, penso nesta comparação
entre a árvore e a alma; e em como, nas coisas da natureza, não se liga
a sentimentos, deitando fora o que é inútil para que o novo possa ter
o seu lugar. Mas uma alma não se
deixa podar, como a árvore. O seu crescimento faz-se sobre si mesma; não
perde as folhas de um inverno para o outro; e as novas flores e frutos crescem
sobre outras flores e frutos, juntando-se nessa mistura
que obriga o homem a decidir, a ter de esquecer partes da sua vida,
mesmo que saiba que a alma guarda tudo, e que um dia tudo voltará
ao de cima.
O que não é diferente, numa alma ou
numa árvore, são os pássaros: tanto esses pardais que o outono leva, e
o calor volta a trazer, como as aves abstractas que cantam, por vezes, por dentro
da alma, no verão como no inverno. Só que estas, nenhuma fisga
as enxota para o outro lado do muro. São as aves do poema. Voam
num céu de palavras, como se tivessem todo o tempo do mundo
para atravessar o horizonte. O poeta, esse, colecciona-as na página: presas
como borboleta do entomologista louco, debatem-se numa agonia de asas (sim tal
como esse pássaro visado pelo caçador,
a ave da alma é tão mortal como o sopro do amor).
Então,
dou-lhes a sua ração diária de versos, alimentando-as
com a tua imagem. E elas
sobrevivem.
Nuno Júdice
As transformações por que a alma passa
são análogas às daquela árvore que tenho no quintal. Já a vi despida,
ébria, numa ânsia de líquidos
e nuvens. Depois vi-a
resplandecente de folhas, pesada,
impondo-me o respeito dos seus frutos - como
se eles não estivessem ali para que eu os colhesse antes que
apodreçam, caídos no chão, ou os pássaros os comam! E
pergunto-me: que relação existe entre
essa árvore nua do inverno, e a árvore sob o verde manto
do verão? Serão os mesmos ramos os que se estendem na sua despida
fragilidade, como se nada os prendesse no ar, e os que ostentam
a jóia de flores e rebentos, com o seu ar primaveril?
Ao cortá-los, para que não tapem o sol às plantas que têm de
nascer à sua volta, penso nesta comparação
entre a árvore e a alma; e em como, nas coisas da natureza, não se liga
a sentimentos, deitando fora o que é inútil para que o novo possa ter
o seu lugar. Mas uma alma não se
deixa podar, como a árvore. O seu crescimento faz-se sobre si mesma; não
perde as folhas de um inverno para o outro; e as novas flores e frutos crescem
sobre outras flores e frutos, juntando-se nessa mistura
que obriga o homem a decidir, a ter de esquecer partes da sua vida,
mesmo que saiba que a alma guarda tudo, e que um dia tudo voltará
ao de cima.
O que não é diferente, numa alma ou
numa árvore, são os pássaros: tanto esses pardais que o outono leva, e
o calor volta a trazer, como as aves abstractas que cantam, por vezes, por dentro
da alma, no verão como no inverno. Só que estas, nenhuma fisga
as enxota para o outro lado do muro. São as aves do poema. Voam
num céu de palavras, como se tivessem todo o tempo do mundo
para atravessar o horizonte. O poeta, esse, colecciona-as na página: presas
como borboleta do entomologista louco, debatem-se numa agonia de asas (sim tal
como esse pássaro visado pelo caçador,
a ave da alma é tão mortal como o sopro do amor).
Então,
dou-lhes a sua ração diária de versos, alimentando-as
com a tua imagem. E elas
sobrevivem.
Nuno Júdice
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