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segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Ruy Belo

 

Muita gente me tem falado a meu respeito 
como quem me chamasse pelo nome e eu me voltasse 
e nesse nome dito nessa boca fosse toda a minha vida 
e eu morresse quando entre pinhais quem me chamara a fechasse 

Muita gente me tem falado a meu respeito 
mas eu cresço e decresço não reparo e anoitece 
e já nem sei ao certo quantos dias meço 
Regresso com o gado contra o sol rasante 
Mas é de névoa ou fumo o algodão que cobre as casas 
aonde regressamos atraídos pela luz que já nos campos se consome? 

Os ciprestes os pássaros saúdam-me e eu passo 
com um olho vazado transpareço o meu passado 
e tudo esqueço e peço mesmo a Deus que esqueça quanto sou 
além dessa medida simples onde me vasou 
Sabermos nós que a face de algum mar ao pôr do sol pode mudar 
e nenhum dia-a-dia consentir ao homem mais que a morna superfície 
dos gestos por que troca a mais íntima morte que merece 

Nada na minha poesia é meu 
juro por Deus dizer toda a verdade 
Ponho a mão na cabeça o dia é escuro e vago e eu respiro 
Espero pela manhã como quem nasce 
Ninguém sabe o meu nome porque 
eu já perdi ao longe alguns dos olhos 
e fui feliz em cafés de província onde me vi sentar 

Digam que foi mentira, que não sou ninguém, 
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada 
fechada como boca onde não encontro nada: 
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem 
na verdade pergunto coisas por aí além 
Eu não vivi ali em tempo algum 

É de manhã caminho nem meus passos oiço 
oitenta passos diz-se que darei 
Vão-se fechando os dois alinhamentos das moradas 
arredonda-se o largo, alguns problemas camarários 
Duvido de mim próprio: quem serei? 
O carro rega coisas tão profundas como esta 
Meu Deus meu Deus, que mal eu fiz? 
Eu estive em Dinard e vou talvez casar 
Acordo e transistorizo os dois ouvidos numa música abundante 

Muita gente me tem falado a meu respeito 
mas eu cresço e minguo certas vezes anoitece 
Sou coisa que se molha encolhe e envelhece 
tudo me aquece e tudo me arrefece 
Dois pés e duas mãos, algumas pás de terra 
E sabem mesmo que o meu nome é Rá, por isso me conhecem 
Sou a doença e sou onde me dói 
sou sítio onde se nega que se morre 
Tem graça haver quem fale a meu respeito. 


Ruy Belo




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