lembro aquela primeira em vez
em que me persuadiste a fechar os dedos
por onde passava a areia que contava
o correr louco dos dias
falaste de uma brisa matinal
de palavras feitas
com que despertavas diariamente
da matéria do tempo
pensei na Elsinore de Cesariny
e na floração da magnólia de Luiza
exigiste
lume
para te dar chão
vento
para navegar as águas
exigiste
presente
para exorcizar
os espectros que teimosamente
habitavam os pretéritos
telúrico
senti a noite
penetrar a pele
um ar quente silente
embrenhando-se na carne
e uma humidade
entranhando-se nos ossos
despindo o céu de luz
num início de verão
questionei o significado da
aparentemente estranha
metáfora dos elementos
e demandamos juntos
o sentido das circunstâncias
fomos conduzidos pelo
indelével toque das mãos
e pelas emanações da pele
autenticada pelo amor
através da madrugada
até um tempo novo
em que dos olhos fizemos
pontos de luz
e intimamente próximos
dissipamos o nevoeiro
rui amaral mendes in a noite o sangue [2016] ©
É quando estás de joelhos
que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos te entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra
[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']
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