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quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Ruy Belo

 

Odeio este tempo detergente 
um tempo português que até utilizou 
os primeiros acordes da quinta sinfonia de beethoven 
como indicativo da voz do ocidente 
chamada actualmente a emissão em línguas estrangeiras 
um tempo que parou e só mudou 
o nome que puseram num mundo que muda 
a coisas que afinal permaneceram 
um tempo português que alguma vez até em camões vê 
o antecessor e criador de coisa como a nato 
com a profética visão de quem consegue conceber tal obra 
bem pouco literária por sinal e só possível graças à visão 
de quem com um só olho vê as coisas quatrocentos anos antes
Odeio este meu tempo detergente 
de uma poesia que discreta até se erótica antigamente 
hoje se prostitui numa publicidade 
devida a algum poeta público que a certo detergente 
deu de repente esse teu nome musical de musa 
a ti precisamente a ti nesse teu rosto sorridente 
onde o poeta público publicitário porventura viu 
sobressair teu riso nesse território de alegria 
e a brancura mais alva nesses dentes alvejar 
E eu que faço eu aqui em todo este tempo detergente quando 
sinto subitamente cem saudades tuas 
que posso que não seja odiar mais um meio que jamais 
tentaria impedir evitaria um tempo que consente até contente 
que faças dentro em pouco um ano mais 
um meio onde nem mesmo eu mulher afinal sei 
que terei de fazer para deter ao menos um momento essa tua idade 
a tua juventude se possível anos antes de haver-te conhecido 
por acaso e já tarde na cidade onde nasceste 
cidade que unamuno diz viver morrer apenas por amor 
amor morto ou mortal mas amor imortal 
cidade solidão as ruas muita gente os sons o sol 
difusos e confusos corredores de uma faculdade 
folhas que se renovam rostos que outros rostos 
tão firmes tão presentes permanentes um só ano antes 
friamente destroem sem deixar sequer 
ao menos uma marca nessa fria impassível pedra 
o tempo os sóis dos séculos cingindo os cintos da cidade 
dessa cidade aonde o povo morre novo à volta 
do mesmo monumento destinado a exaltá-lo 
cidade onde afinal a paisagem é pretexto para o homem 
cidade portuguesa ó portugal ó parte da hispânia maior 
maneira triste de se ser ibéria onde 
da terra emerge o homem que depois o rosto nela imerge 
ó portugal dos pescadores de espinho 
espinho do suicida laranjeira espinho praia 
antiga amiga e conhecida de unamuno 
a praia dos seus últimos passeios portugueses 
angústia atlântica e odor ó dor olor a campo 
praia que só existe quando alguém a veste 
coisa que foi somente quando tu mulher a viste 
Aqui em portugal aqui na vasta praia portuguesa 
aqui nasci e ao nascer morri 
como morri a morte que por sorte sempre tive 
pesadamente do mais alto do meu peso dos meus anos 
em cada um dos sítios onde um dia estive 
Aqui tive dezasseis anos aos dezasseis anos 
aqui só vejo pés há muitos anos já 
Aqui o meu chapéu-de-chuva mais ao sul aceita em chapa o sol 
chapéu que fecho quando fecha o sol definidor do dia 
Tive um passado agora inacessível um passado 
tão alto como a torre do relógio da aldeia 
que pontual pontua a passagem do tempo 
um tempo não ainda detergente um tempo 
afinal só visível no sensível alastrar da sombra 
ao longo desse pátio só possível ao adolescente 
que mais tarde e mais só e de maneira mais sensível 
mais só se sentirá no meio da imensa gente 
que se sentia ali entre a andorinha e a nespereira 
Não o sabia então mas dominava um mundo 
esse mundo que espero que me espere um dia ao fundo 
lá quando findo o dia sob o chão me afundo e ao final 
em terra e em verdade é que me fundo 
Mas eu aqui completamente envolto neste tempo detergente 
é da segunda-feira e da semana que preciso pois 
posso lutar melhor por uma luz melhor 
do que esta luz do mar à hora do entardecer 
É da cidade é da publicidade é da perversidade 
que preciso e não tenho aqui na praia 
Não tenho nem o mar nem tão rudimentar 
a técnica de olhar alguém as minhas mãos 
para me devassar a vã vida privada 
É de inverno é domingo estou sozinho aqui na praia 
regresso a casa à noite apanho eu próprio a roupa no quintal 
e tenho a sensação de quem alguma coisa 
faz pela vez primeira e sente bem ou mal 
que tarde toma agora o seu banho lustral


Ruy Belo



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