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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Carlos Drummond de Andrade

vivências 
 
 
 
    

































Ganhei (perdi) meu dia. 
E baixa a coisa fria 
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaçam, num suspiro. 

E me pergunto e me respiro 
na fuga deste dia que era mil 
para mim que esperava
os grandes sóis violentos, me sentia 
tão rico deste dia 
e lá se foi secreto, ao serro frio. 

Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera 
bem antes sua vaga pedraria? 
Mas quando me perdi, se estou perdido 
antes de haver nascido 
e me nasci votado à perda 
de frutos que não tenho nem colhia? 

Gastei meu dia. Nele me perdi. 
De tantas perdas uma clara via 
por certo se abriria 
de mim a mim, estrela fria. 
As árvores lá fora se meditam. 
O inverno é quente em mim, que o estou berrando 
e em mim vai derretendo 
este torrão de sal que está chorando. 

Ah, chega de lamento e versos ditos 
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça, 
ao ouvido do muro, 
ao liso ouvido gotejante 
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia 
seu tapete de água, distraída. 

E vou me recolher 
ao cofre de fantasmas, que a notícia 
de perdidos lá não chegue nem açule 
os olhos policiais do amor-vigia. 
Não me procurem que me perdi eu mesmo 
como os homens se matam, e as enguias 
à loca se recolhem, na água fria.

Dia, 
espelho de projeto não vivido, 
e contudo viver era tão flamas 
na promessa dos deuses; e é tão ríspido 
em meio aos oratórios já vazios 
em que a alma barroca tenta confortar-se,
mas só vislumbra o frio noutro frio. 

Meu Deus, essência estranha 
ao vaso que me sinto, ou forma vã, 
pois que, eu essência, não habito 
vossa arquitetura imerecida; 
meu Deus e meu conflito, 
nem vos dou conta de mim nem desafio 
as garras inefáveis: eis que assisto 
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo 
de me tornar planície em que já pisam 
servos e bois e militares em serviço 
da sombra, e uma criança 
que o tempo novo me anuncia e nega. 

Terra a que me inclino sob o frio 
de minha testa que se alonga, 
e sinto mais presente quando aspiro 
em ti o fumo antigo dos parentes, 
minha terra, me tens; e teu cativo 
passeias brandamente 
como ao que vai morrer se estende a vista 
de espaços luminosos, intocáveis: 
em mim o que resiste são teus poros. 
E sou meu próprio frio que me fecho 
Corto o frio da folha. Sou teu frio. 

E sou meu próprio frio que me fecho 
longe do amor desabitado e líquido, 
amor em que me amaram, me feriram 
sete vezes por dia em sete dias 
de sete vidas de ouro, 
amor, fonte de eterno frio, 
minha pena deserta, ao fim de março, 
amor, quem contaria? 
E já não sei se é jogo, ou se poesia.



Carlos Drummond de Andrade

1 comentário:

Fatima maria disse...

Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estrela fria.

beijooooo......