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domingo, 16 de maio de 2021

António Carlos Cortez

 

Entraste na noite ao som do negrume dessa voz estridente,
talvez ardente, a letra a fazer-te a suturação da pele e da 
boca agrafada à mecânica noite já esperada. Era uma nota 
musical de gelo fino, quebrando-te as poucas seguranças 
que detinhas - música altíssima, assim o verso, a multiplicação 
desses versos e depois cities of dust, outra força cuja 
fome nos fez descer ao fundo dos instintos: lembro-me 
de te ter beijado com a língua de um eclipse marcando a 
marron os teus lábios, os teus olhos, o azul mergulhador, 
vencido pelas marés dos instintos agudos dessa voz, a essa 
voz, semelhantes, uivos, cidades de pó, o pó, a misturada 
luciferina ardência de um poema tão noturno que provocasse 
nas avenidas da cidade a saída de todas as pessoas, 
dos seus apartamentos, assim nuas, como traves erguidas
a um sol antiquíssimo, facas, despidas, todas, as cópulas 
douradas sonhadas e ditas pelo grande xamã - a profecia 
cumprida - a vida terrivelmente bela, assim, tão custosa 
de ser olhada que, olhando-se, todos, cegos para este mundo,
a uma praia branca, de ferro, despertassem.


António Carlos Cortez

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