A Virgem Mãe, depois de reparar
que ninguém se encontrava já na ermida,
desceu devagarinho do altar,
- como temendo ser surpreendida -
e foi logo espreitar, pé ante pé,
à janela que deita para a rua:
no Céu, brilhava clara luz da Lua.
Em seu altar sorria S. José...
Nem viv’alma. E então Nossa Senhora,
segura já de que ninguém a via,
pôs em acção a ideia redentora
que tivera naquele santo dia.
Foi buscar um cestinho de costura
que ocultara no vão de uma janela.
O cesto era pertença da capela:
- não se rompesse a veste ao padre-cura...
Cortou em largas tira o seu manto,
enfiou uma linha numa agulha
e, depois, foi sentar-se para um canto,
mas sem fazer a mais ligeira bulha.
Quem a visse coser assim tão bem,
ora enfiando ora puxando alinha,
di-la-ia a melhor costureirinha,
mas nunca, certamente, a Virgem Mãe!
O S. José sorria sempre muito,
olhando-a com sincera devoção:
é que ele bem sabia o meigo intuito
que obrigava a senhora a tal serão.
Os outros Santos, todos num cochicho,
não perdiam de vista o altar-mor.
O Santo António, para ver melhor,
até ia caindo do seu nicho...
Houve uma Santa - a gentileza manda
sobre o seu nome conservar sigilo -
que até ficou de resplendor à banda,
tais voltas deu para espreitar aquilo.
A Senhora entretanto costurava,
presa dum sonho que se não descreve,
alheia ao tempo que fugia breve
e ao pasmo que em redor se condensava.
Esteve assim, cosendo, horas a fio,
à frouxa luz de trémula candeia.
De entretida, nem dava pelo frio...
E, contudo, nevava sobre a aldeia!
Fez bibes, camisinhas, tudo quanto
pode servir de abafo a um petiz.
Cada vez refulgia mais
o seu olhar imaculado e santo.
E as peças que a Senhora ia acabando
os anjos dum retábulo da igreja
levavam-nas depois num voo brando
- voo de pomba que no Céu adeja -
às criancinhas que andam pelo mundo
sem roupa, sem abrigo e sem família...
A Virgem continuava na vigília.
Havia em roda um soluçar profundo.
Por fim, adormeceu, ou de cansaço
ou por doce milagre de Jesus.
- Um enxoval inteiro no regaço
e na fronte uma auréola de luz!
E de manhã na missa do Natal,
quando o prior saiu da sacristia,
foi empontar a Virgem que dormia
- tendo nas mãos a agulha e o dedal.
*
Adolfo Simões Muller
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