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quarta-feira, 31 de maio de 2023

Nuno Júdice

 

Assim os vivos também se tornam fantasmas: bato-lhes 
à porta da alma, vagueio num descampado de sentimentos, 
chamo-os - e vejo-os partir. Construo a solidão 
com os pedaços das imagens que me deixaram. Ergo 
edifícios a partir de memórias, de palavras, de gestos que 
ficaram das nossas conversas, quando o tempo se reduzia 
ao instante que vivíamos, e nenhum futuro nos impunha 
a sua sombra. Agora, porém, a que estação te irei buscar? Em 
que banco de jardim te irei surpreender, olhando essa manhã 
que marca a separação dos amantes? Limito-me a esperar 
que esta porta se abra, uma vez mais, e a primavera 
entre para este quarto onde a noite se instalou. 

No entanto, és tu que eu quero guardar neste 
canto onde as aves fugiram. Sei que um pressentimento 
de outono fez cair todas as folhas, deixando à vista 
o horizonte seco como esse espelho onde nada se 
reflecte, com o seu descanso mais negro. Será isso 
aquilo a que se chama amor? Ouve: os murmúrios que nascem 
de uma entrega de corpos, por entre os silêncios da casa, 
ou então sobrepondo-se a um vago ruído de chuva, 
nos vidros, enquanto o desejo corre pelos teus lábios 
como a nuvem mais frágil do destino. E ainda: a música 
quem impõe a plenitude de uma recompensa, como se ela pudesse 
durar mais do que o tempo que nos é imposto? Dizes-me: 
um dom doloroso. Mas o que é o amor senão esse trabalho 
de renúncia e entrega, a lenta bebida que nos impregna 
com o seu veneno, e nos concede a única vida possível? 

Então, regressa da tua ausência; ou dá-me ao menos 
a tua sombra, para que ela me cubra com esse manto 
de obstinação que só os tristes arrastam. 


Nuno Júdice




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