Assim os vivos também se tornam fantasmas: bato-lhes
à porta da alma, vagueio num descampado de sentimentos,
chamo-os - e vejo-os partir. Construo a solidão
com os pedaços das imagens que me deixaram. Ergo
edifícios a partir de memórias, de palavras, de gestos que
ficaram das nossas conversas, quando o tempo se reduzia
ao instante que vivíamos, e nenhum futuro nos impunha
a sua sombra. Agora, porém, a que estação te irei buscar? Em
que banco de jardim te irei surpreender, olhando essa manhã
que marca a separação dos amantes? Limito-me a esperar
que esta porta se abra, uma vez mais, e a primavera
entre para este quarto onde a noite se instalou.
No entanto, és tu que eu quero guardar neste
canto onde as aves fugiram. Sei que um pressentimento
de outono fez cair todas as folhas, deixando à vista
o horizonte seco como esse espelho onde nada se
reflecte, com o seu descanso mais negro. Será isso
aquilo a que se chama amor? Ouve: os murmúrios que nascem
de uma entrega de corpos, por entre os silêncios da casa,
ou então sobrepondo-se a um vago ruído de chuva,
nos vidros, enquanto o desejo corre pelos teus lábios
como a nuvem mais frágil do destino. E ainda: a música
quem impõe a plenitude de uma recompensa, como se ela pudesse
durar mais do que o tempo que nos é imposto? Dizes-me:
um dom doloroso. Mas o que é o amor senão esse trabalho
de renúncia e entrega, a lenta bebida que nos impregna
com o seu veneno, e nos concede a única vida possível?
Então, regressa da tua ausência; ou dá-me ao menos
a tua sombra, para que ela me cubra com esse manto
de obstinação que só os tristes arrastam.
Nuno Júdice