fez frio, muito frio, naquela noite de Maio
sozinho junto ao mar.
o interior da casa prosseguia quente
uma morada alheia ao frio que por momentos a habitava:
o frio primacial por dentro do calor artificial
a percepção da impenetrabilidade da dor
e a descoberta da tangibilidade das coisas impensáveis
na obstinada convocação da memória
de uns lábios com a cor quente das cerejas
reencontrei a ironia dos elementos
pois que esse fruto estava condenado por
velho adágio a ser saboreado em dias frios
num tempo que antecede o advento do solstício
foi então que percebi que a míngua sentida
não era somente de frutos
mas também das amendoeiras em flor
projectadas nos teus olhos:
uma conjugação de seiva e calor por dentro
das primaveras da vida que correm indiferentes
às imposições da física dos elementos
sim, fez frio, muito frio,
numa noite de Maio junto ao mar.
forjado na demanda dos pontos cardeais
habituei-me a que meu olhos
encontrassem por fim repouso
perdidos em horizontes feitos de água
mas tu deitaste mão da chave que era tua
abriste a porta e estendeste os ramos
negaste as lógicas da física
e a ciência por detrás dos elementos
partilhaste comigo o cheiro das flores
e o sabor dos frutos
e reclamaste teu o calor que por fim
influíras no meu peito.
rui amaral mendes in a noite o sangue [2016] ©
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