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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Fernando Pinto do Amaral









Não consigo dormir. Há pouca horas
despedi-me de ti - "every time 
we say goodbye
I die a little". Devo habituar-me
às fases dessa lua a que obedeces, 
às estranhas marés de cada instante 
que tu sabes viver como se fosse 
o único, o melhor da tua vida 
isenta de remorsos e de apegos, 
tão próxima de tudo. A minha dor 
vai-se apagando à medida que um anjo 
desce ao meu quarto e começa a torná-lo 
fugaz imitação de um paraíso 
em que até o meu nome se alterasse. 

Não há nada a fazer, no entanto: 
o facto é que, apesar de algum amor, 
eu não me chamo Pedro, 
mas sou ainda demasiado humano 
para me libertar. Ainda não despertei, 
ainda não tenho trinta e cinco anos 
como Siddharta no momento em que 
terá visto o vazio, escutado o inaudível. 

Aquilo que vislumbro a esta hora 
são rápidos reflexos de uma silhueta 
que só podes ser tu 
entre o céu e o mar, nessa noite 
de lua cheia, quando abandonámos 
um restaurante junto ao Guincho. Eu queria 
ficar também assim, unir-me devagar 
à linha do horizonte, sem saber 
distinguir as fronteiras de coisa nenhuma. 

Não hei-de conseguir: por mais que tente, 
por mais que me desprenda ou desaprenda 
os ritos e os ritmos do corpo ou da alma, 
hei-de lembrar-me dos teus olhos vagos 
e hei-de supor que estavam procurando 
dizer-me qualquer coisa. Apenas o silêncio 
poderia falar como eles 
nessa plena doçura de existir 
na maior paz do mundo. E contudo, pra mim 
cada palavra se conjuga sempre 
com outras palavras, e assim por diante 
até ao infinito, até formarem 
por exemplo um poema como este 
- inútil quer pra mim, quer para ti 
ou pra qualquer leitor que nele ainda 
pretendesse encontrar alguns vestígios 
dessa tão pobre e má sabedoria 
à qual, já só por hábito literário, 
gostamos de chamar o coração. 

Despedi-me de ti há pouco tempo, 
mas continuo a ver-te, ignorando 
por que me agrada ainda a sensação 
de ter morrido mais um pouco. A vida 
vai arrastar-me ao longo de outras vidas 
entre o maelström dos bares onde irei afogar 
esta ansiedade exausta - não é grave, 
eu sei que não é grave e que entre nós 
há-de restar plo menos a sombra de um anjo 
que nos segrede uma palavra mágica 
e saiba prolongá-la em tudo o que algum dia
- talvez daqui por meses, anos, séculos -
ainda formos capazes de sentir. 


Fernando Pinto do Amaral    





1 comentário:

Fatima maria disse...

Aquilo que vislumbro a esta hora
são rápidos reflexos de uma silhueta
que só podes ser tu
entre o céu e o mar, nessa noite
de lua cheia, quando abandonámos
um restaurante junto ao Guincho. Eu queria
ficar também assim, unir-me devagar
à linha do horizonte, sem saber
distinguir as fronteiras de coisa nenhuma.

bjinhos