Seguidores

terça-feira, 31 de março de 2020






Muriel
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

Natália Correia





      POEMA

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.


Natália Correia
in "Sonetos Românticos"  

Nenhuma descrição de foto disponível.

segunda-feira, 30 de março de 2020

E, de volta, José Ángel Buesa







Soneto II

Meu coração se sente satisfeito
de te haver amado e nunca possuído:
assim teu amor se salva do olvido
igual a minha ternura do despeito.

Jamais te vi desnuda sobre o leito
nem ouvi tua voz morrendo em meu ouvido:
assim bem fugaz não se há convertido
um grande amor num prazer estreito.

Quando o deleite sumir do já vivido
acrescentado-se ao que resta ao peito,
pois, só a ilusão se vai pelo sentido.

E, nesse fazer e desfazer o feito,
só um amor se salva do olvido
e é o amor que queda insatisfeito.


De volta Gustavo Adolfo Bécquer






         


                                             

Gustavo Adolfo 






Rima XLIV

Como um livro aberto
leio no fundo de tuas pupilas;
Para que fingir nos lábios
sorrisos que os olhos desmentem?

Chora! Não te envergonhes
de confessar que me quisestes um pouco.
Chora! Ninguém nos olha!
Tu sabes: sou um homem....e também choro! 


Gustavo Adolfo 

Publicada por Ricardo Valério






           

Amor Sem Dono


O coração sente quando chega o amor perfeito
Surge sorridente, provocante, meigo, sorrateiro
Aquece a alma, oferece afecto, não tem defeito
Pretendendo logo mostrar ser o amor primeiro
Surge como o vento num suavizar permanente
O coração fecha uma janela e abre uma porta
Por onde entra, aquele amor, tão convincente
Que para o coração nada mais conta e importa
Quando esse amor, pelo desatino, decide partir
Deixando o coração em pedaços, ferido de dor
Em desalento, frustrado, em chaga e abandono
Diz o tempo que o amor é uma ternura incerta
E que o coração acredita numa vivência certa
Quando devia saber que o amor não tem dono

✔✔

"" R I C K ""
.

............ POEMA.






     
Pedido

Quando a morte vier, meu amor,
fechemos os olhos para a olhar por dentro
e deixemos aos nossos lábios o murmúrio
da palavra branda jamais pronunciada
e às nossas mãos a carícia dispersa;
relembremos o dia impossível,
belo por isso e por isso desprezado,
e esqueçamos o que nos não deixaram ver
e o resto que sobrou do nada que possuímos;
deixemos à poesia que surge
o pranto de quem a trocou para comer
e os passos sem rumo pelas ruas hostis;
deixemos à carne o que não alcançámos,
e morramos então, naturalmente...

Tomaz Kim


A imagem pode conter: ar livre

Poema em tempo de Coronavírus





      

Poema em tempo de Coronavírus


A brutalidade da vida é uma coisa normal.
Como sou delicado
tento fazer poesia 
mesmo quando uma pandemia
me isola das coisas e pessoas que amo. 
Sou naturalmente indefeso
contra qualquer tipo de vírus.
Pego gripe 
com a facilidade que os grandes goleiros 
pegam pênaltis. 
E não gosto muito de longas conversas 
por celular 
nem de interações digitais demais. 
Meus receios são tão maiores ainda
porque sei que tudo é frágil 
ao menor contacto.
E me entrego aos únicos prazeres 
que me parecem possíveis:
dormir a qualquer hora e sem limites
(que a preguiça sempre foi uma das minhas qualidades),
ler sem a menor regra,
ouvir todo e qualquer tipo de música, 
comer sardinha, até mesmo de lata, 
mastigar castanha do Pará, 
e me embriagar 
com algumas taças de vinho 
porquê, de qualquer forma,
não posso viver sem sonhar!

domingo, 29 de março de 2020

Jorge Palma - Encosta-te a mim






        Jorge Palma - Encosta-te a mim
Encosta-te a mim, 
nós já vivemos cem mil anos 
encosta-te a mim, 
talvez eu esteja a exagerar 
encosta-te a mim, 
dá cabo dos teus desenganes
não queiras ver quem eu não sou, 
deixa-me chegar. 
Chegado da guerra,
fiz tudo p´ra sobreviver 
em nome da terra, 
no fundo p´ra te merecer 
recebe-me bem, 
não desencantes os meus passos 
faz de mim o teu herói,
não quero adormecer.
Tudo o que eu vi, 
estou a partilhar contigo 
o que não vivi, hei-de inventar contigo 
sei que não sei, 
às vezes entender o teu olhar 
mas quero-te bem, 
encosta-te a mim.
Encosta-te a mim, 
desatinamos tantas vezes 
vizinha de mim, 
deixa ser meu o teu quintal 
recebe esta pomba 
que não está armadilhada 
foi comprada, foi roubada, 
seja como for.
Eu venho do nada, 
porque arrasei o que não quis 
em nome da estrada, 
onde só quero ser feliz 
enrosca-te a mim, 
vai desarmar a flor queimada 
vai beijar o homem-bomba, 
quero adormecer.
Tudo o que eu vi, 
estou a partilhar contigo
o que não vivi, 
um dia hei-de inventar contigo 
sei que não sei, 
às vezes entender o teu olhar 
mas quero-te bem,
encosta-te a mim

sábado, 28 de março de 2020

Robinson Rodriguez Herrera


AINDA UM POETA DE COSTA RICA





        CUMPLICIDADE 

Nós temos conspirado,
Amada minha, contra o mundo:
Urdindo íntimas tramas
encontro furtivos,
atentando
contra o falso pudor
das beatas,
pintando as avenidas
com nossos nomes,
buscando a mesma escuridão
que os fugitivos,
inventando chaves e segredos,
resistindo a batalhas
cotidianas,
Imersos
em nossa causa
apaixonada e clandestina.

Robinson Rodriguez Herrera    



Oswaldo Montenegro






      POESIA
Metade
Oswaldo Montenegro

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Vinicius de Moraes







   Soneto da Mulher ao Sol

Uma mulher ao sol - eis todo o meu desejo
Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz
A flor dos lábios entreaberta para o beijo
A pele a fulgurar todo o pólen da luz.

Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol - eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pêlo umido, e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.

Uma mulher ao sol sobre quem me debruce
Em quem beba e a quem morda, com quem me lamente
E que ao se submeter se enfureça e soluce

E tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me busque novamente - e se deixes a dormir
Quando, pacificado, eu tiver de partir...

Vinicius de Moraes    
A imagem pode conter: texto

quinta-feira, 26 de março de 2020

Almada Negreiros






      POESIA
Aconteceu-me
Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos !
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.

Almada Negreiros