POESIA
Manhãs de Domingo
Tenho saudades tuas
Saudades.
Nem é bem todos os dias.
Não paro nas ruas a recordar-te
nem oiço as nossas músicas
uma e outra vez sem cessar.
Não releio os livros que costumávamos ler
nem paro sozinho nos miradouros onde te
beijava.
É verdade que não rasguei as tuas fotos
mas também é verdade que não olho para elas.
Estão numa gaveta onde deixaste roupa interior
e onde o teu cheiro não existe mais.
Só cheira a roupa lavada, como as memórias.
Apesar disso, tenho saudades tuas.
Na correria dos dias
nem me lembra o teu beijo matinal
nem os teus cabelos despenteados
nem o toc-toc do salto alto no chão do quarto.
Se queres saber a verdade,
até agradeço não ter que esperar por ninguém
e não ter ninguém que repare
no meu mau-humor de cada manhã.
Por vezes ajeitavas-me o nó da gravata
mas agora nem gravata uso, que se lixe!
Ainda assim,
deito apenas metade do pacote de açúcar
no café negro que me desperta
e deixo a outra metade para te adoçar a boca
mas acontece que não estás.
Tenho saudades da tua boca.
Não dos beijos. Ou melhor, não só dos beijos.
Saudades da tua boca que é mais que beijos.
Gostava de ver o movimento
dos teus lábios quando falavas.
Por vezes dizias que eu não te ouvia.
É verdade. Desculpa.
Ficava a olhar o movimento dos teus lábios
como um beiral de onde saiam pássaros.
Apenas me esquecia de ouvir os pássaros
e por isso me repreendias
irritada, assanhada
encantadoramente arreliada
até eu te pedir desculpa com um beijo
no relevo rugoso dos teus lábios
dessa boca que é mais que beijos
é beiral de pássaros.
Tenho saudades até dos pássaros
que eu não ouvia.
Talvez agora me arrependa de não te ouvir mais
de não ter mantido aquele encantamento
ao olhar para ti como uma criança
que vê a neve pela primeira vez.
Talvez tenha deixado de nevar na tua conversa
ou talvez eu tenha perdido a inocência.
Talvez a vida se tenha tornado um enorme
talvez
porque talvez tivesse sido diferente
se eu fosse diferente
ou talvez se tu fosses diferente
ou talvez se nós dois fossemos diferentes
ou talvez se nós dois permanecêssemos iguais
ou talvez, quem sabe, talvez…
houvesse sempre um talvez a mais.
Afinal, só talvez tenha saudades tuas!
Saudades.
Nem é bem todos os dias
porque a verdade é que gosto de silêncio.
Porque gosto da secretária desarrumada
E dos papéis que são como os amigos…
- não sabemos onde estão,
mas sabemos mais ou menos onde param
e isso me basta!
Porque gosto de usar roupa gasta
ou até de andar de andar nu pela casa
e ouvir música ao deitar
sem incomodar ninguém.
Porque gosto de me perder nas horas
e ter horas para me perder
sem que me apontem o dedo.
Porque gosto de ser um gato sem medo,
um gato sem dono.
Porque gosto de ter o meu canto
o meu abandono
o meu casaco engelhado no guarda-fatos
um quarto polvilhado de sapatos
e um sem-fim de jornais por ler
numa pilha ao lado do sofá
ou numa lareira a arder.
Sabes bem, que gosto até
de desenhar na cinza dos jornais mortos
e encontrar pó nas estantes com livros tortos
e até na moldura no porta-retratos
onde já houve fotografias tuas
fotografias nossas,
e hoje há apenas fotografias de ruas
por onde gostaria de passear contigo
embora sabendo que, talvez tu já não possas…
porque talvez tenhas o teu rosto noutro
porta-retratos
porque talvez tenhas outro par
junto aos teu par de sapatos…
Saudades.
Sabes? Nem é bem todos os dias.
Mas todos os Domingos garanto-te que sim.
Tenho saudades imensas
das nossas manhãs de Domingo.
Não imaginas como tenho
saudades das nossas manhãs de Domingo.
Saudades imensas, repito
das manhãs livres como praias de Inverno
da cama que transpirava um torpor eterno
do acordar moroso
sabendo que ninguém nos espera.
*in "Para Ti"
1 comentário:
Saudade, é uma força que nos abraça, que nos ajuda a amamentar, toda a história de uma vida que teima sempre em ficar !!!... Bj Conde <3
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