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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Jorge de Sena

 

DEC

Essa verdade: eu sei, de cada qual. 
Mas a mentira de uns não é verdade de outros, 
quando uns e outros gritam que a detêm, 
como se fosse um património, um vínculo, uma pátria. 
Não: má-fé é só má-fé, e nunca um erro. 
Por todas as verdades à verdade vai 
quem sem má-fé sobre ela se debruce. 
Errando embora, a lealdade intacta 
nos leva pura onde as verdades não. 
E que é verdade, a última verdade? 
Apenas ser-se humano além de nós; 
ouvir e ver, e não ouvir, não ver, 
quanto de nós e de outros nos divida. 
Porque divisos somos na unidade extrema: 
muitos em nós como nos outros muitos. 
Mas de verdade e de erro nos unimos; 
e de má-fé nos repartimos tanto 
que nada resta: a própria morte morre 
em vossas bocas que se fecham falsas 
ou se abrem falsas para mais traição.
E em vossos gestos que, medrosos, tecem 
a rede vil da falsa solidão. 
Como quando a nós abandonamos 
e aos outros entregamos o saber incerto 
do que pensamos ser; ou como quando 
levados vamos pelo vento odioso 
que o mal profunda à nossa volta e em nós; 
como quando não somos, além do que nos prende, 
a soma derradeira que o fulgor da morte 
instantânea fará no estrondo em que chegar: 
eis a má-fé, eis a traição, a infâmia, 
talhadas com fervor nas cómodas lembranças 
de quanto é de família não amar o próximo 
senão como um farrapo que se demitiu 
qual nós nos demitimos não amando nele 
a liberdade irredutível de ser quem 
covardemente em nós não procuramos. 
Que mundanal solicitude a vossa! 
Protestai, defendei, gritai palavras 
que bocas sujas de ouro já rilharam. 
Essas palavras hão-de abandonar-vos, 
e ver-vos-ei sem elas, nus, despidos, 
ante o espelho da vida que, real, 
não há-de reflectir-vos essa imagem vá 
com que iludistes a dignidade humana 
na hora em que o silêncio era a verdade 
do Amor traído em suas faces todas.


Jorge de Sena





1 comentário:

adry disse...

Este poema de Jorge de Sena aborda a complexidade da verdade, mentira, má-fé e traição nas relações humanas. Sena parece questionar a busca da verdade além das máscaras da falsidade, destacando a importância da lealdade e a inevitabilidade da divisão entre as pessoas. A reflexão profunda sobre a natureza humana e a busca pela verdade revela a complexidade das relações interpessoais.
Nestas dicotomias o ser humano, se perde em emoções fúteis e pueris,que muitas vezes,apenas servem para enganar egos mal resolvidos
Foi um longo comentário,mas o poema e Sena, merecem um pouco mais do que o comum.
Beijo.