Essa verdade: eu sei, de cada qual.
Mas a mentira de uns não é verdade de outros,
quando uns e outros gritam que a detêm,
como se fosse um património, um vínculo, uma pátria.
Não: má-fé é só má-fé, e nunca um erro.
Por todas as verdades à verdade vai
quem sem má-fé sobre ela se debruce.
Errando embora, a lealdade intacta
nos leva pura onde as verdades não.
E que é verdade, a última verdade?
Apenas ser-se humano além de nós;
ouvir e ver, e não ouvir, não ver,
quanto de nós e de outros nos divida.
Porque divisos somos na unidade extrema:
muitos em nós como nos outros muitos.
Mas de verdade e de erro nos unimos;
e de má-fé nos repartimos tanto
que nada resta: a própria morte morre
em vossas bocas que se fecham falsas
ou se abrem falsas para mais traição.
E em vossos gestos que, medrosos, tecem
a rede vil da falsa solidão.
Como quando a nós abandonamos
e aos outros entregamos o saber incerto
do que pensamos ser; ou como quando
levados vamos pelo vento odioso
que o mal profunda à nossa volta e em nós;
como quando não somos, além do que nos prende,
a soma derradeira que o fulgor da morte
instantânea fará no estrondo em que chegar:
eis a má-fé, eis a traição, a infâmia,
talhadas com fervor nas cómodas lembranças
de quanto é de família não amar o próximo
senão como um farrapo que se demitiu
qual nós nos demitimos não amando nele
a liberdade irredutível de ser quem
covardemente em nós não procuramos.
Que mundanal solicitude a vossa!
Protestai, defendei, gritai palavras
que bocas sujas de ouro já rilharam.
Essas palavras hão-de abandonar-vos,
e ver-vos-ei sem elas, nus, despidos,
ante o espelho da vida que, real,
não há-de reflectir-vos essa imagem vá
com que iludistes a dignidade humana
na hora em que o silêncio era a verdade
do Amor traído em suas faces todas.
Jorge de Sena