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sábado, 19 de agosto de 2023

Mário Beja Santos

 Todos os Homens São Mentirosos, por Alberto Manguel:

Um quase inquérito policial sobre acidente ou crime, verdade ou fantasia

 


 

Este escritor polifacetado (não lhe escapa o ensaio, o romance, a crítica literária, a antologia, a tradução, a edição, a intervenção televisiva com que agora nos honra, desde que escolheu viver entre nós e oferecer a sua biblioteca monumental aos lisboetas) é medularmente argentino e sente-se à légua a dívida que tem com um escritor seu conterrâneo, o genial Jorge Luis Borges. Porque este romance Todos os Homens São Mentirosos, Tinta da China, 2023, cultiva os enredos pautados pelo inexplicável, o duvidosamente visto. Quando um jornalista francês se lançou à procura do esclarecimento da morte do genial escritor sul-americano Alejandro Bevilacqua, que se despenhara mortalmente do balcão da casa onde vivia, em Madrid, isto nos anos 1970, vai recolher testemunhos absolutamente dispares, mas todos eles fabulosos, harmoniosamente labirínticos, crípticos: da sua presumível amante espanhola, de um escritor argentino que garante ter sido o seu único confidente, do cubano que jura a pé juntos ter partilhado a cela com ele durante a ditadura militar argentina e, pasme-se, até de um delator que já morreu, mas continua a informar desde o além. A trama parece desorientar, e será sempre mais fácil para o leitor que para o jornalista dizer uma de duas coisas: todos os homens são mentirosos ou para cada um a sua verdade.

Alberto Manguel veste o fato do tal escritor argentino que garante ter sido o seu único confidente. Teriam sido amigos que não tinham nada em comum, vai encher a entrevista com mais perguntas que respostas, descreve a genealogia dos Bevilacqua, gente que vem de Bérgamo, e dá-nos o retrato desse homem que saltou do balcão da casa e se estatelou no solo da rua: “Tinha uma espécie de graça natural, uma elegância simples, uma presença anónima. Alto e magro como era, movia-se lentamente, como uma girafa. A sua voz era ao mesmo tempo rouca e tranquilizadora. Os seus olhos encapuchados, latinos, diria eu, davam-lhe um aspeto sonolento. Quando estendia os seus dedos finos, amarelos de nicotina, para agarrar a manga do interlocutor, deixávamo-nos prender, sabendo que toda a resistência era inútil.” Dirá mesmo que era um cavalheiro da província. Ficamos a saber que não era muito amigo do trabalho, que recebera uma herança da avó, que inesperadamente se encontraram em Madrid, dois exilados. Fatal como o destino, volta-se ao passado para falar de Buenos Aires, um confidente tem muitos segredos, o entrevistado fala dos amores precoces de Bevilacqua, a importância que teve na vida dele Loredana, que vivia com um artista de marionetas, tudo acabou na água; e depois temos a vida cosmopolita e intelectual de Madrid, volta-se ao passado para falar de Graciela, outro amor sem futuro, agora em Madrid Bevilacqua dá-se com a ardente Andreia, nesta altura Bevilacqua vende bugigangas nas ruas e a Andreia descobre na casa onde vivem um saco onde havia um embrulho, ela abriu e era uma pilha de folhas, a primeira tinha um título: Elogio da Mentira, por portas e travessas teremos obra editada, a crítica exalta-a, no mínimo trata-se de uma obra-prima. E caminha-se para o mistério.           No dia do lançamento o autor foge, recolhe a casa, há uma confusão de entradas e saídas. E não tem resposta para estas perguntas: quem era esse homem que ele conhecera sob o nome de Alejandro Bevilacqua, quem tinha sido essa personagem contraditória, luminosa e opaca?

O jornalista bate a outras portas. Há quem conteste tudo quanto disse Manguel. A amante arvora-se na verdadeira conhecedora de Alejandro, conta a história do saco e do manuscrito, fez-se a edição à revelia de Bevilacqua. E há uma história estranha de alguém que apareceu dizendo que era autor daquele livro, há para ali páginas de uma grande beleza: “Escrever é uma forma de ameaça com o que não se pronuncia em voz alta, com a sombra das letras a atormentar-nos entre as linhas.” Ela confessa que Alejandro tinha sido preso e espancado, que havia policias sinistros. E termina o seu depoimento: “Li em algum sítio que a única coisa que podemos fazer para lutar contra a irrealidade do mundo é contar a nossa própria história.”

E surge alguém que conheceu Bevilacqua na prisão, era escritor, confessa ser o autor do Elogio da Mentira, pediu a Bevilacqua que se acaso ele saísse da prisão em primeiro lugar levasse o manuscrito. Passou-se este tempo todo, também veio para Madrid, está presente no dia do lançamento, mais tarde trocam confidências e Bevilacqua chega a dizer-lhe que já não se lembrava que tinha tal manuscrito e não era minimamente responsável pela sua publicação. E descreve aquela balbúrdia lá em casa que culminou talvez com um assassinato ou um suicídio.

Há parágrafos prodigiosos que surgem como um solilóquio, é alguém que ganha a vida como informador da polícia política, irá também convergir para Madrid, o nevoeiro sobre o destino de Bevilacqua adensa-se, é como se alguém nos estivesse a falar do outro mundo.

Compete ao jornalista o grande final, não há euforia, ele parece arrepelar o cabelo, toda esta trama, os depoimentos do tal confidente, da amante, daquele que jura ter partilhado a cela, do delator que depõe como se estivesse numa reunião espírita, é tudo nevoeiro, e clama para que o leitor não se sinta defraudado: “O que importa foi dito. Saber quem matou quem, como, porquê, são assuntos que apenas interessa ao burocrata ou ao inspetor de polícia, e eles não lerão estas páginas. A personagem que cheguei a conhecer por interposita persona é quase inexistente; transita de hipótese a hipótese segundo a sua figura concorde com determinados dados e preconceitos (…) Nem todos esses diversos Bevilacquas são os que o jornalista persegue. Nem todas as facetas de uma realidade lhe interessam. Apenas uma, se é sincero, ou talvez nenhuma. Por isso escreve. Para dá-la a conhecer de um ponto de vista particular, privado (…) Agora que conheço (ou penso conhecer) a história de Alejandro Bevilacqua, sei que não a escreverei. Em parte, porque não existe como história, como essa que os leitores de Elogio da Mentira esperam, prólogo ou coda ao livro fantasma, biografia desse espectro quase anónimo que hoje usurpa o papel de autor nas bibliotecas do nosso mundo (…) Não sei se o próprio Bevilacqua teria reconhecido, nesse catálogo de versões biográficas, a sua, a verdadeira. Como saber, entre tanta figura que se parece connosco nos espelhos, qual é a que nos representa cabalmente e qual é a que nos atraiçoa. Do nosso ínfimo ponto do mundo, como poder observamo-nos a nós próprios sem falsas imaginações? Como distinguir a realidade do desejo?”

Atrevo-me a dizer que mesmo quem souber ler nas entrelinhas será capaz de descobrir se houve acidente ou crime e quem, acima de tudo, era esse ser humano que dava pelo nome de Alejandro Bevilacqua, se era infame, herói, genial escritor ou oportunista. Afinal, nada se fica a saber em concreto.

De leitura obrigatória.


                                                                

                            Mário Beja Santos








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