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terça-feira, 29 de agosto de 2023

Luís Miguel Nava

 




De bruços sobre o lavatório, abro a torneira, tapo o ralo, fico alguns 
momentos a ver correr a esperança, que vai enchendo aos poucos 
a bacia. Depois fecho a torneira e, retirando a tampa, vejo-a escoar-se em 
gorgolejos que cada vez são mais humanos e mais fundos. É a respiração 
do ralo, que só então dou conta de que está dentro de mim, por uma 
dessas distorções a que é costume eu ser atreito e que me impede ainda 
de me ver no próprio espelho, que, apesar de se encontrar à minha frente, 
não consigo deslocar do avesso dos meus olhos. 
Os meus sentidos rangem, solidários com os canos, eles que eu 
gostaria de poder assimilar ao mar, a um céu azul, desanuviado, e que 
jamais me dão do espírito visões onde não se encastoem nuvens e 
rebentem tempestades. 
Repito a operação. Mergulho às vezes as mãos na minha esperança, 
mas retiro-as ao cabo de algum tempo, antes que se transformem 
em raízes. Destapo uma vez mais o ralo. Assim corre a amizade - 
penso, olhando o redemoinho -, assim correm os afectos, que, depois 
de encherem a bacia onde a custo nos lavamos sem os fazermos transbordar, 
se escoam sem regresso em direcção ao caos. 


Luís Miguel Nava



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