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terça-feira, 18 de julho de 2023

Herberto Helder

 

JUL

arde(ntemente)...





Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira 
e a eternidade das mãos. 
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas 
lâmpadas, todas as coisas. 
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis, e tensos 
na música. 

Esta linguagem era o disposto verão das musas, 
o meu único verão. 
A profundidade das águas onde uma mulher 
mergulha os dedos, e morre. 
Onde ela ressuscita indefinidamente. 
- Porque uma mulher toma-me 
em suas mãos livres e faz de mim 
um dardo que atira. - Sou amado, 
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto -
e doado às coisas mínimas. 

Na treva de uma carne batida como um búzio 
pelas cítaras, sou uma onda. 
Escorre minha vida imemorial pelos meandros 
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio 
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre. 
E de repente eu sou uma torre queimada 
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra. 
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas, 
e por detrás de tudo, num lugar muito puro, 
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio. 

Essa mulher cercou-me com as duas mãos. 
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue, 
acendo-lhe as falangetas, 
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras. 
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente. 
Sou eterno, amado, análogo. 
Destruo as coisas. 

Toda a água descendo é fria, fria. 
Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes 
sóis que se quebram entre os dedos, 
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas 
da carne, 
tudo o que é húmido, e quente, e fecundo, 
e terrivelmente belo 
- não é nada que se diga com um nome. 
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo. 

E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo 
lírio a lírio todo o sangue interior, 
e a vida que se toca de uma escoada 
recordação. 

Toda a juventude é vingativa. 
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura. 
Um dia acorda com toda a ciência, e canta 
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe 
pelos frutos, 
ou a lenta iluminação da morte como espírito 
nas paisagens de uma inspiração. 
A mulher pega nessa pedra tão jovem, 
e atira-a para o espaço. 
Sou amado. - E é uma pedra celeste. 

Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia 
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se 
desse quente silêncio. 
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive. 
Depois levanta-se com os olhos imensos 
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas, 
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado. 
Amam-me, multiplicam-me. 
Só assim eu sou eterno.


Herberto Helder





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