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segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Affonso Romano de Sant'Anna

 

Photo: René Burri












Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto 
e sinto muito o que falo
                                        - pois morro sempre que calo. 
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas. 
                                        - e classes despreparadas. 
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens. 
Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos 
maduravam um rubro outubro 
                                        outros iam ardendo um torpe agosto. 
Mas nem sempre ao verde abril 
                                                    se segue a flor de maio. 
Às vezes se segue o fosso
                                        - e o roer do magro osso. 
E o que era revolução outrora 
                                        agora passa à convulsão inglória. 
E enquanto ardíamos a derrota como escória 
e os vendedores nos palácios espocavam seus champanhas
                                                        sobre a aurora 
o reprovado aluno aprendia 
        com quantos paus se faz a derrisória estória. 
Convertidos em alvo e presa da real caçada 
abriu-se embandeirado 
            um festival de caça aos pombos
            - enquanto raiava sanguínea e fresca a madrugada. 

Os mais afoitos e desesperados 
em vez de regressarem como eu 
                                    sobre os covardes passos, 
em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos, 
seguiram no horizonte uma miragem 
                                                        e logo da luta 
                                                                            passaram 
                                                        ao luto. 
Vi-os lubrificando suas armas 
        e os vi tombados pelas ruas e grutas. 
Vi-os arrebatando louros e mulheres 
        e serem sepultados às ocultas. 
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia 
        e por mais que os advertisse do inevitável final 
        não pude lhes poupar o sangue e o ritual. 

        Hoje 
                os que sobraram vivem em escuras 
                e europeias alamedas, em subterrâneos 
                de saudade, aspirando um chão-de-estrelas, 
                plangendo um violão com seu violado desejo 
                a colher flores em suecos cemitérios. 

Talvez 
        todo o país seja apenas um ajuntamento 
        e o consequente aviltamento 
                                        - e uma insolvente cicatriz. 

        Mas este é o que me deram, 
        e este é o que eu lamento, 
        e é neste que espero
                                        - livrar-me do meu tormento. 

Meu problema, parece, é mesmo de princípio: 
- do prazer e da realidade
                                        - que eu pensava 
com o tempo resolver
                                    - mas só agrava com a idade. 

    Há quem se ajuste
    engolindo seu fel com mel. 
    Eu escrevo o desajuste
    vomitando no papel.


Affonso Romano de Sant'Anna

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