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terça-feira, 31 de janeiro de 2023

José Agostinho Baptista

 

Ao leres este livro,
ao chegares a esta página,
reconhecerás a cicatriz,
o sangue na face em ruínas,
escurecendo as feridas do amor,
escurecendo o perfil de um homem,
o seu coração perdido nos prados da desolação,
no alarme dos sinos que, mais uma vez,
nos templos da idade profunda,
dobram pelos cisnes parados,
pela jovem palidez dos dedos,
quando viver é apenas uma vertigem ardente,
o incêndio dos celeiros,
do fino, do cereal maduro.


José Agostinho Baptista





segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

"MY WAY " (Meu jeito)

 ESCRITO POR REVAUX IMORTALIZADO POR SINATRA

"MY WAY"
(Meu jeito)
E agora que o fim está próximo, encaro o desafio final.
Meu amigo, eu vou expor o meu caso
do qual eu tenho a certeza.
Vivi toda uma vida que foi cheia,
viajei por todas as estradas, e mais,
muito mais do que isso, fiz do meu jeito.
Arrependimentos tive alguns,
mas poucos para mencionar.
Fiz o que tinha de fazer e vi tudo sem excepção.
Planeei cada caminho do mapa
cada passo cuidadosamente no correr do atalho
mas muito, muito mais do que isso, fiz do meu jeito.
Sim, houve horas em que mordi mais
do que podia podia mastigar, mas,
quando havia dúvidas eu engoli e cuspi fora.
Encarei tudo e permaneci de pé. Fiz do meu jeito.
Amei, ri, chorei, tive as minhas falhas,
a minha parte das derrotas,
e agora, enquanto as lágrimas caem
eu acho tudo tão divertido !
E pensar que fiz tudo aquilo de um jeito extrovertido !
Ah não, não, eu fiz do meu jeito.
Para que serve um homem, o que tem ele ?
Além de si próprio ele não tem nada !
Eu fiz do meu jeito, sim, foi do meu jeito.
Jacques Revaux




Nuno Júdice

 

Photo: Francesca Woodman



Faço uma linha de meio do corpo, como num 
tratado de tordesilhas, para dividir o que me 
pertence e o que apenas pertence ao espelho 
que te reflecte, quando passas a meio do quarto,
e um lado és presente e material aos 
meus olhos, e do outro lado és só imagem,
como se estivesses a entrar numa espécie de 
realidade em que não existe hoje nem ontem,
mas apenas a beleza que dura para além do 
tempo e das circunstâncias em que te vejo.

É um tratado que faço entre mim e mim para 
te dividir, e saber que este corpo que hoje 
possuo logo deixará de me pertencer quando 
o deitar no poema, como alguma vénus de
rubens ou banhista de renoir, envoltas 
em véus ou em arbustos, à luz das velas ou
do sol. E sinto o que tenho quando te perco,
e o teu corpo se imprime para lá dessa linha
abstracta que te separa de ti própria, quando 
em ti se juntam a realidade e o seu reflexo.

Mas se tiro da tua frente esse espelho, é 
dentro de mim que tu te reflectes, e sou eu 
o espelho em que entras para deixares de 
fazer parte de mim, e seres quem aqui vive,
e para sempre respira neste último verso.


Nuno Júdice

domingo, 29 de janeiro de 2023

Não posso ..... António Ramos Rosa.

 (Não posso adiar o amor para outro século)

Não posso adiar o amor para outro século

Não posso

Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda

Sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço

Que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indensa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração



António Ramos Rosa.




Felipe Benítez Reyes

 

AMORES DE VERÃO 


À MANEIRA DE ÁLVARO DE CAMPOS

Estou cansado de sentir.
De sentir até esses sentimentos
que deixei há algum tempo de sentir
e que regressam do passado como um eco
para que eu os sinta sem nos sentir.

Os sentimentos que são inoportunos,
os inesperados, também me cansam.
Aborrece-me este coração que não pára de sentir
as coisas até que não sente,
que não deveria sentir, porque não são sentimentos
estritamente seus, mas de alguém
que está já muito cansado de sentir.

Não sei o que sinto
é falso ou é veraz, alheio ou próprio,
e daí sem dúvida este cansaço,
enquanto observo sem sentir nada
os barcos que zarpam com esses marinheiros
de redes invisíveis
que navegarão sem sentir nada,
como também eu não sinto enquanto escrevo isto,
como não sinto quando penso no passado
e digo a mim mesmo: "Isto que estou a pensar nunca existiu",
e nesse momento o meu eu fundamental — digamos — também não existe,
porque não está amparado por uma densidade de tempo verificável,
um tempo exclusivo que sustente
e que vou sentir em seguida
sem o sentir, e daí este ponderar fantasmagorias
para puxar atrás a tarde
engalanada de ouros transitórios
e do fumo das fábricas,
a tarde que foge para a noite,
como o escriturário entristecido
que, ao regressar à sua pequena casa, se sente o imperador
de planetas desconhecidos.

E com certeza a nostalgia, sim, a nostalgia
daquele que sentia o que julgava sentir
e canalizava tudo o que sentia para o gozo ou para a dor,
e não para a indiferença do sentir,
como este eu de agora que não sente
a obrigação de sentir.

Nostalgia
de quando a vida era mais veemente e um pouco mais estranha,
pelo menos como recordo que a sentia,
embora quem saberá.


Felipe Benítez Reyes (n. Rota, Cádiz, Espanha, 25 de Fevereiro de 1960), in Privilégio de Penumbra, trad. Vasco Gato, colecção Mão Dita #05, Abysmo, Junho de 2018, pp. 19-23.

sábado, 28 de janeiro de 2023

 



São tantos os gestos de amor que só entendemos mais tarde. Assim tão tarde...

There are so many gestures of love that we only understand later. So late...

De, Hernãni Matos

 

Brincadeiras d'outrora



Nos meus tempos de miúdo, jogava aos amalhões, à mosca, à pateira, à roda, ao botão, ao berlinde e ao soco quando era preciso. E levava também no focinho, porque lá diz o rifão: “Quem vai à guerra, dá e leva.” Nas brincadeiras o que contava era a imaginação sem limites e a arte do desenrasca, em que o português ainda hoje é mestre.
Havia também a ida aos grilos e partidas que se pregavam aos tansos como a “ida aos gambosinos” ou fazer de estribo na “brincadeira do rei coxo”.
As meninas, salvo alguma Maria Rapaz, que as havia e algumas delas encantadoras, brincavam às donas de casa, passando a ferro, fazendo jantarinhos e dando banho e biberon aos bonecos.
Hoje, reconheço que o sistema estava montado para gerar diferença de género e havia coisas que, apesar de puto, eu tinha a noção que não deveriam ser assim.
Hoje o sistema travestiu-se e foi montado de maneira diferente. Porém, deu para o torto.
Além das brincadeiras de rapazes e tanto quanto me lembra a memória dos tempos idos, sempre tive gosto por colecções, entre elas, botões, cromos, moedas, selos, postais, panfletos publicitários e mais tarde, aí pelos 12 anos, livros.
A estas colecções vieram-se juntar outras, mas as colecções primitivas ainda hoje perduram. Entre elas, as colecções de cromos montadas nas respectivas cadernetas, como é o caso das RAÇAS HUMANAS, da HISTÓRIA DE PORTUGAL, da HISTÓRIA NATURAL e dos TRAJES TÍPICOS DE TODO O MUNDO, entre eles os de Portugal.

As cadernetas de cromos, foram as minhas pastilhas de Cultura. Foram o meu software, antes de terem inventado as consolas electrónicas que programam e condicionam o divertimento, assim como a raça maldita dos Magalhães, que põem os putos convencidos que fazer um trabalho de pesquisa, não é mais que uma mera operação de corte e colagem.
Não trocava uma caderneta de cromos por 10 Magalhães, nem sequer o meu talego de botões (com mirôlas e chapéuzinhos de chumbo) por consolas.
O registo das memórias passadas é o melhor investimento cultural que podemos deixar aos nossos netos....






A caça aos grilos




José Gomes Ferreira

 

Não, não me deixes apagar o destino 
que ajudaste a acender 
nos nossos corações 
atravessados pelo mesmo rio.

Dá-lhe o sopro do sonho,
a lenha dos dedos,
o pólen dos lábios,
as abelhas devoradas pelo mel.

Dá-lhe as chamas que fazem ninho por dentro dos frutos,
a cal das unhas cândidas que despem os mortos,
os seios suados de treva,
os dentes de rasgar árvores.

Dá-lhe o mundo louco de caveira,
os tambores da fome,
as carícias de seda inquieta,
o frio arrancado dos punhais,
a morte - jeito de mais luz.

Dá-lhe o terror. o com o copo de veneno à cabeceira,
o hálito dos abismados,
os túmulos arranhados, as mãos de vidro na testa,
os lábios que sabem ao suicídio dos anjos.

Dá-lhe tudo, tudo, tudo, tudo...

... a bela fogueira do destino 
onde te lançaste viva 
e eu continuo a arder em labaredas de cinzas.


José Gomes Ferreira



sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

José Agostinho Baptista

 

Nos silenciosos vales do norte 
nascem as inesperadas rosas do amor,
com as suas pétalas mágicas,
e às vezes,
ternos espinhos no coração de um homem,
na sua eterna solidão.
São rosas do sol e das chuvas,
iluminando a noite desse homem,
a sua respiração,
as suas mãos que estremecem à volta da 
flor.
E elas vão e vêm, caladas,
repartindo a ternura e a cor,
a oculta ternura, 
a discreta cor no coração do homem,
na sua eterna solidão.


José Agostinho Baptista




quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

... Maria Olinda Maia

 ...

Arde em mim a sensação
dos minutos sem fim
doce,com sabor a mel...
Alma e coração
Tu pedaço de mim.

Teaser Ana Luisa Amaral




[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']

 É quando estás de joelhos

que és toda bicho da Terra
toda fulgente de pêlos
toda brotada das trevas
toda pesada nos beiços
de um barro que nunca seca
nem no cântico dos seios
nem no soluço das pernas
toda raízes nos dedos
nas unhas toda silvestre
nos olhos toda nascente
no ventre toda floresta
em tudo toda segredo
se de joelhos te entregas
sempre que estás de joelhos
todos os frutos da Terra


[De David Mourão-Ferreira in 'A arte de amar']




quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

José Gomes Ferreira

 

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias 
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão 
- mas o desejo de ser a noite que me guias 
e baixinho ao bafo da tua respiração 
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói 
mas abrir-te mais o abismo que me dói 
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou  e ver-te como és:
dos bichos de suor com sombra aos pés.
Complicação de luas e saliva.


José Gomes Ferreira




OTIS REDDING: (Sittin' On) The Dock of the Bay





OTIS REDDING - THE DOC OF THE BAY
Nasceu na Geórgia (celebrada na canção de Ray Charles) e teve uma vida curta. Faleceu com 26 anos, em 1967, num desatre de avião com a sua banda, The Bar-Keys. Um ano após a sua morte esta mesma canção torná-lo-ia famoso: "The Doc Of The Bay". A carreira que o esperaria é fácil de advinhar... que voz!