À MANEIRA DE ÁLVARO DE CAMPOS
Estou cansado de sentir.
De sentir até esses sentimentos
que deixei há algum tempo de sentir
e que regressam do passado como um eco
para que eu os sinta sem nos sentir.
Os sentimentos que são inoportunos,
os inesperados, também me cansam.
Aborrece-me este coração que não pára de sentir
as coisas até que não sente,
que não deveria sentir, porque não são sentimentos
estritamente seus, mas de alguém
que está já muito cansado de sentir.
Não sei o que sinto
é falso ou é veraz, alheio ou próprio,
e daí sem dúvida este cansaço,
enquanto observo sem sentir nada
os barcos que zarpam com esses marinheiros
de redes invisíveis
que navegarão sem sentir nada,
como também eu não sinto enquanto escrevo isto,
como não sinto quando penso no passado
e digo a mim mesmo: "Isto que estou a pensar nunca existiu",
e nesse momento o meu eu fundamental — digamos — também não existe,
porque não está amparado por uma densidade de tempo verificável,
um tempo exclusivo que sustente
e que vou sentir em seguida
sem o sentir, e daí este ponderar fantasmagorias
para puxar atrás a tarde
engalanada de ouros transitórios
e do fumo das fábricas,
a tarde que foge para a noite,
como o escriturário entristecido
que, ao regressar à sua pequena casa, se sente o imperador
de planetas desconhecidos.
E com certeza a nostalgia, sim, a nostalgia
daquele que sentia o que julgava sentir
e canalizava tudo o que sentia para o gozo ou para a dor,
e não para a indiferença do sentir,
como este eu de agora que não sente
a obrigação de sentir.
Nostalgia
de quando a vida era mais veemente e um pouco mais estranha,
pelo menos como recordo que a sentia,
embora quem saberá.
Felipe Benítez Reyes (n. Rota, Cádiz, Espanha, 25 de Fevereiro de 1960), in Privilégio de Penumbra, trad. Vasco Gato, colecção Mão Dita #05, Abysmo, Junho de 2018, pp. 19-23.