São profundas as relações entre a música e a poesia. Mas
não me refiro à questão órfica, nem sequer está para mim
em causa a interdependência entre som e sentido. A poesia
nasce da música, mas sobretudo, para mim, de certa
música, quando há um ritmo que defino como "melancólico-sensual",
um ritmo que exige a escrita outra, a outra
escrita que está por dentro da escrita e produz, no cérebro
empenhado em ser motor de imagens, deflagração
de um incêndio erótico, a sucessão de planos. Escrevo
ouvindo música, sempre - e cada vez mais. Numa espécie
de febre, numa espécie de violência sexual, de desejosa
energia vital, como se, ouvindo, tudo quanto sou
pudesse ser transferido para certas décadas - a de 70 e
80, principalmente - e carnalmente me fossem dadas as
cenas carnais da música sonorosa, a música dançada nas
grandes pistas dos sons múltiplos, definidores da corpórea
actividade dos corpos, isto é, a poesia é devedora de
atmosferas onde fascínio e perigo se cruzam, onde a batida
certa - a percussão de, por exemplo, the smiths, ou
depeche mode, ou echo and the funnymen, ou OMD -
me faz mergulhar no mais fundo das minhas perdas e
pequenas iluminações, a música fornece-me a toada certa
para eu escrever como quem ama e não como quem escreve.
António Carlos Cortez
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