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domingo, 7 de novembro de 2021

António Carlos Cortez



 

São profundas as relações entre a música e a poesia. Mas 
não me refiro à questão órfica, nem sequer está para mim 
em causa a interdependência entre som e sentido. A poesia 
nasce da música, mas sobretudo, para mim, de certa 
música, quando há um ritmo que defino como "melancólico-sensual", 
um ritmo que exige a escrita outra, a outra 
escrita que está por dentro da escrita e produz, no cérebro 
empenhado em ser motor de imagens, deflagração 
de um incêndio erótico, a sucessão de planos. Escrevo 
ouvindo música, sempre - e cada vez mais. Numa espécie 
de febre, numa espécie de violência sexual, de desejosa 
energia vital, como se, ouvindo, tudo quanto sou 
pudesse ser transferido para certas décadas - a de 70 e 
80, principalmente - e carnalmente me fossem dadas as 
cenas carnais da música sonorosa, a música dançada nas 
grandes pistas dos sons múltiplos, definidores da corpórea 
actividade dos corpos, isto é, a poesia é devedora de 
atmosferas onde fascínio e perigo se cruzam, onde a batida 
certa - a percussão de, por exemplo, the smiths, ou 
depeche mode, ou echo and the funnymen, ou OMD - 
me faz mergulhar no mais fundo das minhas perdas e 
pequenas iluminações, a música fornece-me a toada certa 
para eu escrever como quem ama e não como quem escreve.


António Carlos Cortez

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