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sábado, 21 de outubro de 2023

Tela 47 / Vasco Gato

 

OCT

A esta hora em que a noite é uma seringa partida. A esta hora em que os 
pulmões são de seda e o sangue circula muito devagar. Eu não estou. 





Pode ser a chuva numa esplanada ou, ao invés, o carro que trava a
tempo da primavera. Não importa. 

A noite é uma especiaria que acende os corpos. 

Há três dias que durmo desordenadamente. Transpiro e acordo e vejo 
casas que são desdobramentos da minha própria casa. A verdade é que 
preciso de ti para um poema. Preciso que te passeies por uma dessas casas, 
que te sentes, que te deites. Preciso olhar para ti durante 27 segundos. 

A solidão é um serviço misterioso. Reunimo-nos para prestar contas do 
nosso desaparecimento e por vezes agarramos um braço como se 
pretendêssemos instalá-lo, de repente e para sempre, na nossa ternura. 

Todos os meus silêncios são uma criança que espreita. Todas as minhas 
faltas são uma criança entusiasmada. Todos os meus poemas são crianças 
mudas que gesticulam. 

Todos os dias saio para a decisão de um amor sem protagonista. Encosto-me 
às paragens de autocarro e aceno subitamente a alguém que 
passa. Por vezes retribuem-me o gesto e ficamos ambos sem saber se 
por graça, se por um escuro reduto de uma franqueza cada vez mais 
rara. Tens tempo para um estranho? A que horas me poderias confessar 
o teu nome? Conheço uma igreja que ardeu, conheço outra que é muito 
muito pequena. Escuta, no meio desse teu deserto, ao passar a caravana 
do luxo, será que és capaz de suplicar: água? 

És capaz? És capaz ainda de suplicar? 

Bebe, este poema actua sobre o nervo da alegria. Este poema é um 
cavalo de crina incendiada a ultrapassar a tarde. Nunca perceberás 
por que se move, para onde vai, de que se alimenta. Bebe, alguma vez 
estiveste ébrio no meio da tua ignorância? 

Preciso de ti para um poema. Ofereço-te em troca o meu auto-retrato 
sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma 
estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um 
corpo cheio de insónias, súbitos arrepios, termómetros para novecentas 
febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis, 
fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos 
orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens 
suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos. 

Não me visites. Não me visites agora. A noite deu-me uma filha. Tem 
cabelos verdes. Fiz-lhe um berço de papel. Parece uma estrela caída 
do seu trapézio invisível. Vai demorar muito tempo até reencontrar o 
equilíbrio. Tem pés muito pequenos. Dorme de dia, e à noite respira 
muito e não me larga a mão. 

Sou um pintor. Trago sangue para os vossos olhos. Tenho artérias que 
se descosem e me cospem dentro de mim mesmo. Preciso de muita 
paciência, de todas as mulheres do mundo. Durmo sobre a cama profana 
da minha escuridão. Contagio e deixo-me contagiar pela peste dos 
bairros pequenos. Não suporto muita luz, não sei o que é uma avenida. 
Esquinas, sou qualquer coisa que o espanto torce. Sou viciado no álcool 
dos corpos que se difundem. Bebo das vossas bocas o que não pode 
ser visto. Pinto para me esquecer do que não pode ser visto. Pinto com 
os materiais clandestinos do meu amor. Não projecto nada na minha 
tela. Eu sou a tela. Eu sou a luta das cores por um diafragma de beleza. 
Sou um pintor. Mereço morrer como pintor. Não mereço que me 
prendam. Mereço todas as minhas paixões. 

Vi tudo. Não tudo, mas tudo o que me aconteceu. Garanto-te que prestei 
atenção e estou pronto para mais 47 anos de fita. Não quero rebobinar, 
quero atravessar os pomares da minha loucura terrena, colhendo 
frutos, marcando todas as árvores, com fogo, a ilegível assinatura 
da minha passagem. 

Não é para decifrar! Não é para decifrar! É para se desfazer na boca, 
como açúcar, como vinho, como a erva lenta da infância. 


Vasco Gato

Foto do autor do poema

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