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terça-feira, 31 de agosto de 2021

- Eugénio de Andrade - ✍️ In * (As Mãos E Os Frutos)

 — XXVIII—

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.
Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia :
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.
Hoje deitei - me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.
- Eugénio de Andrade -
✍️
In * (As Mãos E Os Frutos)




Nuno Júdice

 

Foto: Erwin Blumenfeld














O amor é esse gato abstracto que emerge
de um rumor de lençóis para se converter na esfinge
do teu corpo, quando te voltas e me entregas
a península do teu dorso. Escondes-me o horizonte
com os cabelos para que sejas o único
horizonte, e eu o posso tocar com as mãos, moldá-lo
à medida de uma navegação de corpos, como barcos
num sulco de lençóis. Nesta viagem, sigo a linha
curva das tuas ancas, deixando-me guiar pelos
teus olhos que abres, quando a tua boca se liberta
de uma espuma de murmúrios e colho dos teus
seios os bagos do desejo. Às vezes, é no teu rosto
que um gesto abstracto substitui o movimento
exacto de um escultor de emoções; de outras vezes
demoro-me a olhá-lo e perco-me na expectativa
de uma voz que encha de luz o coração
das sombras. Quero ver-te assim, nua neste
véu de palavras com que te envolvo, e
dar-te, à transparência de mármore da ausência,
a pulsação que me conduz a ti, como o vento
que empurra a ave, ou o silêncio que
se converte em canto.


Nuno Júdice

domingo, 29 de agosto de 2021

Escrevi Teu Nome No Vento // Carminho

 Escrevi teu nome no vento

Convencido que o escrevia
Na folha dum esquecimento
Que no vento se perdia

Ao vê-lo seguir envolto
Na poeira do caminho
Julguei meu coração solto
Dos elos do teu carinho

Em vez de ir longe levá-lo
Longe, onde o tempo o desfaça
Fica contente a gritá-lo
Onde passa e a quem passa

Pobre de mim, não pensava
Que tal e qual como eu
O vento se apaixonava
Por esse nome que é teu

E quando o vento se agita
Agita-se o meu tormento
Quero esquecer-te, acredita
Mas cada vez há mais vento

Escrevi Teu Nome No Vento //   Carminho







Eugénio de Andrade, in"As palavras interditas"

 "Os olhos rasos de água"

Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas a luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.
Eugénio de Andrade, in"As palavras interditas"




Rubén Darío divagando

 

Rubén Darío divagando

  


DIVAGACIÓN

 Rubén Darío

¿Los amores exóticos acaso...?

Como rosa de Oriente me fascinas:

me deleitan la seda, el oro, el raso.

Gautier adoraba a las princesas chinas.

 

¡Oh bello amor de mil genuflexiones:

torres de kaolín, pies imposibles,

tasas de té, tortugas y dragones,

y verdes arrozales apacibles!

 

Ámame en chino, en el sonoro chino

de Li-Tai-Pe. Yo igualaré a los sabios

poetas que interpretan el destino;

madrigalizaré junto a tus labios.

 

Diré que eres más bella que la Luna:

que el tesoro del cielo es menos rico

que el tesoro que vela la importuna

caricia de marfil de tu abanico.


DIVAGAÇÃO

 Os amores exóticos por acaso...?

Como rosa do Oriente me fascinas:

me deleitam a seda, o ouro, o cetim.

Gautier adorava as princesas chinesas.

 

Oh! Belo amor mil genuflexões:

torres de caulim pés impossíveis,

taxas de chá, tartarugas e dragões,

e verdes arrozais aprazíveis!

 

Ama-me em chinês, no sonoro chinês

de Li-Tai-Pe. Eu igualarei aos sábios

poetas que interpretam o destino;

madrugalizarei junto aos teus lábios.

 

Direi que és mais bela do que a lua:

que o tesouro do céu é menos rico

que o tesouro que vela a importuna

carícia de marfim de teu leque.

Ilustração: http://pt.nextews.com/.

sábado, 28 de agosto de 2021

Nuno Júdice

 

Photo: Man Ray





















Um rosto é feito de acordo com uma ciência, 
que não é exacta nem dura como a que se estuda 
nas escolas. A sua forma é feita de tempo, 
e nos seus traços se moldam os gestos 
de que uma vida é feita. Por vezes, há palavras 
que nascem da cor que o acompanha, de manhã, 
quando o sol o envolve; de outras vezes, 
podemos ver o silêncio que se imprime 
em volta dos olhos, quando a noite deixa 
marcada a sua sombra. E no rosto em que leio 
a matéria da primavera, soletrando cada sílaba 
com a sua música de aves despertas, 
descubro a imagem que me deixaste, uma tarde, 
quando as aparências se desfizeram 
sobre a mesa, e as tuas mãos se tornaram 
a única realidade do mundo.



Nuno Júdice

Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis


 
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
1-7-1916
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis
(Arte: João Martins)




............... EL VACIO de Fernando Sabido Sanchez

 O vazio

Os meus sonhos são tão vazios
que cavalgo um vôo incorpóreo
para rogar a clemência das noites.
Entretanto chega a madrugada
sem ter alguém à minha espera.
Até a lua se ofusca para me arrastar
para um cenário de treva
mais longínquo do que a morte.
Cai gota a gota, uma chuva
que me desnuda a paixão com ais;
e o medo da inexistência perdura.
Tão tensa é a vertigem, que roço com os lábios
a beleza que se perde
na réplica da impalpável luz.
Tradução: Fernando Oliveira, do original “EL VACÍO” de Fernando Sabido Sánchez




Maria Teresa Horta

 




















Já passou, meu amor, a tempestade 
ficando somente o eco de um trovão 
e as palavras de aresta que provámos 
muito embora iludidas no desvão

do sótão da memória, na turgidez da cave
descendo no amparo do corrimão
para chegar ao fundo da saudade
no lírio breve do nó da tua mão

Ao longe já fugia o temporal
a chuva num sussurro rente ao chão
resfolgando na estranheza que se evade

Lá fora havia ainda a ventania
a lividez da Lua, o desconcerto
as estâncias saqueadas da poesia



Maria Teresa Horta 

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

José Carlos Barros

 É pouco o que te der

É pouco o que te der. É sempre pouco.
Há sempre uma palavra, há sempre um gesto,
há sempre um nome em falta. Há sempre o resto.
Por isso o que te der é sempre pouco.
Às vezes imagino que o teu nome
é feito dos silêncios da floresta.
Às vezes adormeço: é sempre o que me resta
nos dias em que o mar traz o teu nome.
Assim pudesse dar-te o que é do mundo:
navios, uma estrela, nebulosas
planetárias. Ou transformar em rosas
a luz das supernovas que há no mundo.
Assim pudesse dar-te a vida toda
e mais ainda. O resto que se foda.



José Carlos Barros 




António Lobo Antunes

 António Lobo Antunes


As pessoas nos restaurantes fazem-me sempre lembrar os quadros grandes, com martírios de santos, da igreja da minha infância. Casais que não se olham nem se falam: eles de queixo no prato, a espiarem os vizinhos de baixo para cima, elas de cabeça noutro lado e ambos a pensarem
– Porque carga de água não me desamparas a loja?
mas o dinheiro, mas o hábito, mas o medo da solidão dos homens
– E se eu adoeço?
mas a vantagem de ter uma mulher a dias sempre à mão, com olho para os botões a caírem e para as nódoas no fato apesar da chatice de ter que fazer amor com ela de vez em quando
– Assim que acabo arranjo uma desculpa qualquer e levanto- -me logo
porque ela gosta de ficar no nónhónhó, abraçada, e a gente o que nos apetece é que nos deixem em paz, o maior prazer que tiro daquilo é saber que
– Agora, durante uma semana, estou safo
pensar
– Que raio de ideia me fez casar contigo?
pensa
– Só não me separo por causa das crianças
quando não me separo não por causa das crianças, não me separo porque tenho medo, se me aparecesse uma garina em condições, mais nova do que tu, claro, mais bonita, o que também não é difícil, sobretudo de manhã, quando acordas, despenteada, sem pintura, não aguento o barulho dos teus chinelos no corredor, não aguento as tuas conversas, as histórias intermináveis acerca do emprego, constantemente interrompidas por um
– Estás a ouvir?
a gente, que não ouviu nada
– Estou
ela
– Então o que é que eu disse?
a gente, num resmungo
– Que raio de conversa, se respondi que ouvi é porque ouvi
a pensar
– E se me deixasses em paz?
a pensar
– Que idiotas as mulheres
que ainda por cima gastam um rolo inteiro de papel higiénico quando fazem chichi apesar de dois quadradinhos chegarem perfeitamente, para quê tanto papel, senhores, ao entrarmos de manhã na casa de banho encontramos sempre a rodela de algodão, toda preta, com que na véspera, à noite, tiraram a maquilhagem e que nunca despejam no balde como se custasse muito despejar aquilo no balde, basta carregar no pedal com a ponta do pé e nunca carregam, a rodela de algodão, a bandelete com que puxaram o cabelo para trás, a pasta de dentes sem tampa, a toalha torta no toalheiro, aqueles frascos todos, aqueles boiões todos, a inquietação a propósito de uma borbulha no queixo que teimam em mostrar-nos
– Já viste esta borbulha?
uma merdice que mal se percebe de súbito dramática, a queixa indignada
– Nem olhaste
a tragédia da celulite, a tragédia das estrias, o que elas decidem ser uma variz na perna esquerda
– Estou uma velha
ganas de concordar com elas
– Não estás velha, estás a envelhecer
porque a tragédia não é ser velha, é envelhecer, a inveja
– Nos homens dá-lhes charme envelhecerem, nas mulheres é horrível
de facto é horrível mas se por acaso concordamos
– Pensas que és algum actor de cinema, tu?
e de imediato referências à nossa barriga, à tristeza de nos estarmos a tornar repetitivos, à maçada de nos estarmos a tornar cada vez mais chatos, um olhar de desprezo à nossa silhueta
– E gordo, e curvado
portanto nada de conversas sobre a idade para não encontrar olhos que cintilam de lágrimas de humilhação e raiva, a boca, de cantos para baixo
– Desculpa confessar isto mas o que tu mudaste
e claro que mudei mas, ao contrário de ti, mudei para melhor, um dia destes tens as pernas fininhas como dois palitos cravados numa batata, há ginásios, sabias, o que não falta para aí são ginásios de onde voltarás toda suada, de madeixas agarradas à testa, com olheiras, a atirares-te para cima de um sofá, exausta, soprando
– Já não tenho vinte anos
e realmente já não tens, tens quarenta, perdão, quarenta e três, tu logo, ofendidíssima
– Quarenta e dois
nós
– Fazes quarenta e três em junho e estamos em março, olha que grande diferença
elas
– E eu só não falo da tua idade por pena de mim, prefiro esquecer-me que vivo com uma múmia
nós, picados
– Não há nada mais amargo que uma senhora provecta
e oxalá ela fique amuada uma semana ou duas, é da maneira que me salvo do tal e coisa por mais uns dias, tenho que pensar nas amigas da minha filha mais velha para conseguir o tal e coisa ou na atriz daquele filme de ontem na televisão ou nas pequenas do rialitichâo que tu
– Umas pindéricas, umas saloias para não dizer a verdade
pindéricas e saloias de facto que nem português sabem falar mas aqueles peitos, aquelas cinturas, aquelas bocas, no fundo não há como uma pindérica saloia para acordar hormonas, tu, desgostada
– Vocês, homens, são uns animais, e de facto somos, tens razão, somos uns animais mas é graças a elas que eu, e calamo- -nos a tempo, ou seja, pensamos que nos calámos a tempo mas não nos calámos a tempo porque bateste com a porta do apartamento e fico sozinho, sem saber o que fazer, no terror que te passe pela cabeça não voltar.
António Lobo Antunes, in 'Visão' (2016-06-23)