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domingo, 3 de maio de 2020

Adam Zagajewski






     

Photo: Vivian Maier



































Entre o computador, o lápis e a máquina de escrever
passa metade do meu dia. Um dia isso perfará metade dum século.
Vivo em cidades estrangeiras e às vezes converso
com pessoas estranhas sobre coisas que me são estranhas.
Ouço muito música: Bach, Mahler, Chopin, Shostakovich.
Na música encontro força, fraqueza e dor, três elementos naturais.
O quarto não tem nome.
Leio poetas, vivos e mortos, aprendo neles
a tenacidade, a fé e o orgulho. Tento compreender
os grandes filósofos - na maioria dos casos consigo
apanhar apenas farrapos dos seus preciosos pensamentos.
Gosto de dar longos passeios pela rua de Paris
e olhar para os meus semelhantes, impelidos pelo inveja,
cobiça ou raiva; gosto de observar a moeda de prata,
que passa de mão em mão e devagar perde
a sua forma redonda (apaga-se o perfil do imperador).
A meu lado crescem árvores que não exprimem nada,
a não ser uma verde e indiferente perfeição.
Pelos campos vagueiam pássaros negros
que continuam esperando, pacientes como viúvas espanholas.
Já não sou novo, mas há pessoas mais velhas do que eu.
Gosto do sono profundo, em que cesso de existir,
e de rápidas corridas de bicicleta pela estrada campestre,
quando os choupos e as casas
se dissolvem como cúmulos em céus ensolarados.
Às vezes nos museus os quadros falam para mim
e de repente desvanece-se a ironia.
Adoro olhar o rosto da minha mulher.
Aos domingos, telefono ao meu Pai.
De duas em duas semanas encontro-me com os verdadeiros amigos,
desse modo mantemos a fidelidade recíproca.
O meu pais libertou-se dum mal. Gostaria
que a isso se seguisse outra libertação.
Será que posso ser útil? Não sei.
Não sou, na realidade, um filho do mar,
como escreveu sobre si mesmo António Machado,
mas sim um filho do ar, da hotelã-pimenta  e do violoncelo,
e nem todos os caminhos do alto mundo
se cruzam com os caminhos da vida que, por enquanto, 
me pertence.


Adam Zagajewski

1 comentário:

mariferrot disse...

Tudo é composto exactamente pela mesma coisa, nada é sólido, parece ser mas não passa de uma massa vibrante de energia. Quando olhamos à nossa volta, ou mesmo para nós o que vemos é só uma ponta do iceberg !!!... <3

Bj Conde