A PROVA DO HUMANO
Quem terá notado o gesto subtil do velho quando,
ao enrolar o tabaco, limpou o indicador cheio de cuspo
no tampo da mesa? Ali, há exactamente dois dias,
sentara-me eu a escrever reflexões religiosas e um canto
filosófico; depois, cansado do trabalho mental,
desenhei a lápis duas ou três figuras na madeira gasta.
Agora, os restos de café e a saliva dos velhos transformam
esses desenhos banais em peças
de uma autêntica mitologia.
O fumo do tabaco envolve-os como se fosse uma névoa antiga
e as palavras trocadas, a meia voz,
pelos ocasionais frequentadores daquele canto
lembram-me esconjuros, maldições, ou apenas
a invocação de algum espírito transitório.
Assim, não posso passar sem ir, uma ou duas vezes por dia,
àquele sítio: observar um culto que, inconscientemente,
iniciei; e também ouvir o velho Baco
cujas histórias me dão sede e sono.
Mas que fazer nesta cidade de província,
no inverno, à parte ouvir os velhos
ou inventar histórias, enquanto se bebe café
e aguardente?
Nuno Júdice
em Crítica doméstica dos paralelepípedos, 1973
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