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sábado, 4 de março de 2023

António Ramos Rosa

 

O papel, a mesa, o sol, a pena...
Ao lado, a janela. E nada tenho 
e nada sou que escrevo. E nada espero 
de quanto espero. 

Enquanto escrevo não sou nem mesmo quero 
não escuto nem palavras nem silêncio. 
Alinho palavras mas ainda não caminho. 
Estou a uma mesa pobre sem movimento. 

O papel, a mesa, o sol, a pena...
Nada começa, nem à sombra respiro. 
Tudo é distinto e claro. 
Tudo é certo ou obscuro. Em vão caminho. 

Não quero esperar, 
não quero navegar num mar fácil de palavras. 
Quero caminhar somente com o corpo que sou, 
quero, sem querer, ser o próprio sangue, 
músculos, língua, braços, pernas, sexo, 
a mesma certeza oculta e única, tantas vezes clara, 
a mesma força que nos pulsos aflora, tensa, 
a mesma noite aberta que a todo o dia estendo, 
a mesma alta, elástica dança de um corpo vivo! 

Mas agora estou no intervalo em que 
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre. 
Escrevo para não viver sem espaço, 
para que o corpo não morra na sombra fria. 

Sou a pobreza ilimitada de uma página. 
Sou um campo abandonado. A margem 
sem respiração. 

Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe 
a ciência certa da navegação no espaço, 
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia, 
o corpo pode vencer a fria sombra do dia. 

Todas as palavras se iluminam 
ao lume certo do corpo que se despe, 
todas as palavras ficam nuas 
na tua sombra ardente.


António Ramos Rosa



Um dia bom
Saúde. Serenidade. Paz.



 

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