A noite
rodeia-nos com os seus braços longos,
com as suas ferramentas negras,
e aperta-nos,
como se fosse a grande mãe antiga,
inclinada sobre os berços à deriva.
A noite
pinta os lábios de vermelho e as unhas,
abre os decotes de algodão e seda,
calça sapatos muito altos,
quando dança sobre as nossas vidas.
A noite
acende as suas luzes, as suas violentas
luzes amarelas,
e então vemos as estrelas, os recifes, as
ruas sem árvores,
todas as portas fechadas.
A noite
deita-se mais tarde, ao lado dos que não têm
nada,
nem amantes, nem amadas,
perseguidos por uma secreta ansiedade,
por uma dúvida:
quem é esta meretriz,
de quem é este corpo de mistério com os seus
anéis que brilham?
E a noite beija-os com o veneno doce da sua
boca,
morde com os dentes brancos a carne que os
conduziu para o sono.
A noite não responde.
Há quem a sinta mais cedo,
quem a procure quando o sol começa a cair no
horizonte,
porque quer os seus seios altos,
o seu regaço de rosas ternas onde esquecer a
dor,
as atribuladas noções do tempo,
onde ler, nos espelhos turvos da
madrugada,
o destino dos órgãos e dos malditos.
A noite
atira os seus despojos aos litorais do mundo,
remos, crucifixos,
cadáveres azuis de barcos naufragados,
de suicidas ternos,
de paixões assassinadas por Setembro.
A noite
canta nos íngremes becos da cidade,
e a sua voz rouca bate nas nossas fontes,
nos búzios que trazemos por dentro.
José Agostinho Baptista
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