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domingo, 28 de fevereiro de 2021

Miguel Torga

 Quase um Poema de Amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor
Miguel Torga




sábado, 27 de fevereiro de 2021

Nuno Jùdice

 Braille

Leio o amor no livro
da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio
das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos
penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho
as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar
de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço
de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando
o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.
Nuno Júdice





António Ramos Rosa

 


 Noam Galai / foto












De escadas insubmissas 
de fechaduras alerta 
de chaves submersas 
e roucos subterrâneos 
onde a esperança enlouqueceu 
de notas dissonantes 
dum grito de loucura 
de toda a matéria escura 
sufocada e contraída 
nasce o grito claro


António Ramos Rosa

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

De Torre da Guia

 Amar

É sentir os ais

E os golpes

Da mesma dor 

Num corpo

Longe demais

Que nos sufoca

De amor.


Amar é muito pior

Após a dor

Consumada,

Porque amar

Sem ter amor ,

Não é nada ,

Não é nada.


Torre da Guia , do livro Labor das Entranhas




quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Manuel António Pina

 Prece...

Senhor, permite que adormeçamos
antes que feches a luz,
que os rebanhos estejam recolhidos
e os credores se tenham afastado da nossa porta,
mas que tenhamos pago as dívidas aos que nos serviram
e aos que nos amaram e aos que nos esperaram;
as tuas grandes mãos sustentarão o telhado e as paredes
e moerão o grão e fermentarão o trigo,
apaga com as tuas mãos o nosso rasto
e que repousemos
sem motivo para nos culparmos
por não termos sido felizes.
Manuel António Pina




quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Nuno Júdice

 sentidos...

Se pudéssemos dominar as palavras como
se domina um cavalo, com a rédea da retórica
a puxar os impulsos do sentimento e as esporas
da emoção a fazerem correr a frase até
ao fim do verso, o poema seria como a planície
por onde a imaginação cavalga sem freio nem destino,
liberta de cavaleiro e sela.
Ou então, se tivéssemos pela frente o oceano
da página e aí lançássemos a barca da estrofe, sem
antes ter perguntado qual o tempo que iria fazer
durante a viagem, veríamos nascer o temporal
de dentro de um céu de substantivos escuros
como nuvens, e o medo do naufrágio
pesar-nos-ia no ritmo de uma queda de sílabas.
Mas se estivesses aqui, com o teu olhar
pousado num campo de palavras, não apenas
as que designam flores ou aves mas outras
como a terra, a lama, a erva, o verde sombrio
de um arbusto próximo, eu faria do poema
a raiz desse tronco que os invernos não arrancaram,
e alimentá-la-ia com a seiva do amor; e sentiria
nas suas folhas os cabelos da tua noite,
as nervuras da tua mão, o fruto dos teus lábios.
Nuno Júdice




segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Pedir-te /// Maria Teresa Horta

 

Photo: Horst P. Horst


















Pedir-te a sensação 
a água 
o travo 

aquele odor antigo 
de uma parede 
branca 

Pedir-te da vertigem a 
certeza 
que tens nos olhos quando 
me desejas 

Pedir-te sobre a mão 
a boca inchada 
um rasto de saliva 
na garganta 

pedir-te que me dispas 
e me deites 
de borco e os meus seios 
na tua cara 

Pedir-te que me olhes 
e me aceites 
me percorras 
me invadas 
me pressintas 

Pedir-te que me peças que 
te queira 
no separar das horas 
sobre a língua 


Maria Teresa Horta

A CULPA

 A CULPA



A culpa é do pólen dos pinheiros
Dos juízes, padres e mineiros
Dos turistas que vagueiam nas ruas
Das 'strippers' que nunca se põem nuas
Da encefalopatia espongiforme bovina
Do Júlio de Matos, do João e da Catarina
A culpa é dos frangos que têm HN1
E dos pobres que já não têm nenhum
A culpa é das prostitutas que não pagam impostos
Que deviam ser pagos também pelos mortos
A culpa é dos reformados e desempregados
Cambada de malandros feios, excomungados,
A culpa é dos que têm uma vida sã
E da ociosa Eva que comeu a maçã.
A culpa é do Eusébio, que já não joga a bola,
E daqueles que não batem bem da tola.
A culpa é dos putos da casa Pia
Que mentem de noite e de dia.
A culpa é dos traidores que emigram
E dos patriotas que ficam e mendigam.
A culpa é do Partido Social Democrata
E de todos aqueles que usam gravata.
A culpa é do BE, do CDS e do PCP
E dos que não querem o TGV
A culpa até pode ser do urso que hiberna

Mas não será nunca de quem governa.




La Tierra Del Olvido feat. Carlos Vives | Playing For Change | Song Arou...



Música linda e envolvente...

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Pedro Tamen

 Era o amor

que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo, a morte a rir
nos nossos verdes anos...
Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.
Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!
No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…
O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.
Pedro Tamen




Kenny Rogers & Bee Gees - You and I (Tradução)




Certas canções são eternas!


Interpretes como Kenny Rogers e Bee Gees, nunca mais terá igual. Uma pena.

XXXVI

 

XXXVI

 


Bela como a mais escura das noites

a majestosa rainha da Etiópia

povoa os meus sonhos mais ocultos,

as réstias obscuras dos meus desejos portugueses,

a minha fascinação pelas pegajosas jabuticabas,

que não escondem a doçura de seu ser.

Ah! Tentadora mulher,  

a tua pele de alabastro,

com a luminosidade dos astros, 

têm a clareza das profundidades mais escuras,

as perigosas atrações das águas abismais,

o prateado das belezas maiores,

a lisura das curvas feitas para o amor

e para a liberdade das carícias,

que, no prazer, causam dor.

Podes até mesmo 

não ter a pele mais escura do mundo-

como muitos dizem-

todavia, és uma deusa humana

cujo o encanto da cor nos faz felizes

ao reinar na imaginação

nossa, pobres mortais,

súbditos do teu ingênuo explendor 

que nos faz fazer perder os corações. 

Só posso te dizer,

Nyakim Gatwech,

que, da genética, és o high-tech,

o sumo da beleza universal,

a forma do encanto ao natural

e nada mais.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

António Ramos Rosa

 Silêncio(s)

Se eu sou nada esse nada deseja
ser e só no amor encontra a consistência
que envolve o nada que o acolhe e o liberta
para ser oferenda a ti deus ignorado
O que eu sou é pouco para ti e é demais
e só o zero em mim é o teu círculo
e só no seu silêncio está o teu nome
Nada sabendo de ti sei que és o Simples
e se de ti não ouço o mais leve murmúrio
é porque tu habitas o silêncio de todos os silêncios
e é por esse silêncio que morro e ressuscito

António Ramos Rosa com foto do autor.





sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Mário Quintana

 Canção do dia de sempre

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

Mario Quintana




Langston Hughes

 

Foto: Sergio Larrain


















Roubando da noite 
Um pouco
Horas desesperadas 
De prazer. 

Roubando da morte 
Um pouco
Dias desesperados
Da vida.


Langston Hughes

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Hamilton Ramos Afonso

 Emudeço

*

*
De hesitação em hesitação
construí a coragem
de inventar caminhos
em busca do rumo certo,
gastando tempo em cima de tempo,
sem qualquer constrangimento…
Hoje que o encontrei,
vivo usufruindo do escoar lento do tempo
onde não se olha permanentemente para o relógio ,
guiando-me pelo romper da aurora…
...e se esta vai lá no alto é porque cedo se faz
e eu recuso mudar-me…
Apenas emudeço,
sorrindo,
porque pouco preciso, já, para ser feliz...

Hamilton Ramos Afonso





O suporte da vida

 

O suporte da vida

 

Cultiva teus sonhos 

como se fossem rosas. 

Cultiva teus sonhos 

da melhor forma que puder. 

Pensa que teu sonho 

é tudo o que quer-

ainda que, insano, o deixe 

sem cuidado num canto da mente ou

num pedacinho do teu coração.

Não deixe, porém não,

nunca, jamais teu sonho morrer.

Um homem sem sonhos não tem porquê viver!

Ilustração: http://www.sertaocaboclo.com.br/.

Torre da GUIA

 










                                           A saudade em teu lugar


À janela do quarto que deixei

E o tempo habitou em teu lugar

Um dia destes,quando lá passei

Pareceu-me ver-te lá a espreitar ?


Depois de tanto tempo ter passado,

Logo retomei o meu caminho.

Podia lá ser, tu teres voltado

Àquele que fora o nosso ninho ?


Não sei como foi, mas de repente,

Voltei para trás quase a correr,

Não contendo a força inconsciente

Do enorme desejo de te ver.


Olhando de novo, vi enfim

Naquela janela a verdade :

Não eras tu que olhavas para mim,

Mas em teu lugar , era a saudade.


António Torres , que utiliza habitualmente o pseudónimo de ""  Torre da Guia "", nasceu no Porto, a 4 de Junho de 1939 , cidade onde frequentou o Liceu D. Manuel //e o Grande Colégio Universal. Em 1957 terminou os seus estudos no Colégio D. Nuno , na  Póvoa do Varzim. Quando da Revolução de 25 de Abril, radicou-se em França , aí permanecendo até 1979.  Hoje ( 1989 ) vive em Mindelo, Vila do Conde , donde são naturais os seus numerosos  familiares que, desde os seus avòs paternos vão já na 4ª geração.  Pendi a escritor-de-fados desde 1962, após  ter conhecido e estabelecido amizade com Nuno de Aguiar (intérprete de grande parte da minha obra) e ter tido o privilégio da estima e do apoio musical de Álvaro Martins. 


Do livro Labor das entranhas/ Poesia