OCT
A esta hora em que a noite é uma seringa partida. A esta hora em que os
pulmões são de seda e o sangue circula muito devagar. Eu não estou.
Pode ser a chuva numa esplanada ou, ao invés, o carro que trava a
tempo da primavera. Não importa.
A noite é uma especiaria que acende os corpos.
Há três dias que durmo desordenadamente. Transpiro e acordo e vejo
casas que são desdobramentos da minha própria casa. A verdade é que
preciso de ti para um poema. Preciso que te passeies por uma dessas casas,
que te sentes, que te deites. Preciso olhar para ti durante 27 segundos.
A solidão é um serviço misterioso. Reunimo-nos para prestar contas do
nosso desaparecimento e por vezes agarramos um braço como se
pretendêssemos instalá-lo, de repente e para sempre, na nossa ternura.
Todos os meus silêncios são uma criança que espreita. Todas as minhas
faltas são uma criança entusiasmada. Todos os meus poemas são crianças
mudas que gesticulam.
Todos os dias saio para a decisão de um amor sem protagonista. Encosto-me
às paragens de autocarro e aceno subitamente a alguém que
passa. Por vezes retribuem-me o gesto e ficamos ambos sem saber se
por graça, se por um escuro reduto de uma franqueza cada vez mais
rara. Tens tempo para um estranho? A que horas me poderias confessar
o teu nome? Conheço uma igreja que ardeu, conheço outra que é muito
muito pequena. Escuta, no meio desse teu deserto, ao passar a caravana
do luxo, será que és capaz de suplicar: água?
És capaz? És capaz ainda de suplicar?
Bebe, este poema actua sobre o nervo da alegria. Este poema é um
cavalo de crina incendiada a ultrapassar a tarde. Nunca perceberás
por que se move, para onde vai, de que se alimenta. Bebe, alguma vez
estiveste ébrio no meio da tua ignorância?
Preciso de ti para um poema. Ofereço-te em troca o meu auto-retrato
sincero. Tenho quarenta livros prontos para serem lidos. Tenho uma
estratégia infalível para implementar a primavera. Tenho a segurança de um
corpo cheio de insónias, súbitos arrepios, termómetros para novecentas
febres, saliva muito devagar, pés descalços, arrebatamentos incomunicáveis,
fins de noite numa garrafa de vinho, estilhaços de quatrocentos
orgasmos, comoções, paixões flagrantes, primeiros cuidados para jovens
suicidas, lâmpadas que se queimaram nas minhas próprias mãos.
Não me visites. Não me visites agora. A noite deu-me uma filha. Tem
cabelos verdes. Fiz-lhe um berço de papel. Parece uma estrela caída
do seu trapézio invisível. Vai demorar muito tempo até reencontrar o
equilíbrio. Tem pés muito pequenos. Dorme de dia, e à noite respira
muito e não me larga a mão.
Sou um pintor. Trago sangue para os vossos olhos. Tenho artérias que
se descosem e me cospem dentro de mim mesmo. Preciso de muita
paciência, de todas as mulheres do mundo. Durmo sobre a cama profana
da minha escuridão. Contagio e deixo-me contagiar pela peste dos
bairros pequenos. Não suporto muita luz, não sei o que é uma avenida.
Esquinas, sou qualquer coisa que o espanto torce. Sou viciado no álcool
dos corpos que se difundem. Bebo das vossas bocas o que não pode
ser visto. Pinto para me esquecer do que não pode ser visto. Pinto com
os materiais clandestinos do meu amor. Não projecto nada na minha
tela. Eu sou a tela. Eu sou a luta das cores por um diafragma de beleza.
Sou um pintor. Mereço morrer como pintor. Não mereço que me
prendam. Mereço todas as minhas paixões.
Vi tudo. Não tudo, mas tudo o que me aconteceu. Garanto-te que prestei
atenção e estou pronto para mais 47 anos de fita. Não quero rebobinar,
quero atravessar os pomares da minha loucura terrena, colhendo
frutos, marcando todas as árvores, com fogo, a ilegível assinatura
da minha passagem.
Não é para decifrar! Não é para decifrar! É para se desfazer na boca,
como açúcar, como vinho, como a erva lenta da infância.
Vasco Gato
Foto do autor do poema
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