Seguidores

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Mia Couto

 

SEP

(digo dos que se ditam: 
a minha defesa 
são os vossos punhais) 


Quando me disseram "não se vem à vida para 
sonhar" passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi 
materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim 
fizestes despertar a irreparável urgência de ferir. 
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas 
raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia 
das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão 
me apaguei. Estava só para me encher de 
gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente 
olhar de frente a verdade das pequenas 
coisas: esta água vem de onde, quem teceu este 
linho, que mãos fizeram este pão? 
Desloquei-me para tudo ver de um outro 
lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio 
infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas 
vozes que me habitavam silenciosamente. Entre 
mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e 
poente entre oceano e continente. 
O tempo, por vezes, morria de o não semear. 
Terras que golpeava com ternura eram feridas 
que em mim se abriam para me curar. Eram 
terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes 
eram mãos de um corpo que ainda me não nascera. 
Surgiam da obscuridade para afastar a água 
e nela me deixar tombar. Tecido que escapava da 
mais bela das lavadeiras eu ia pelo rio, a corrente 
insuflando-me e eu deixando-me arrastar com 
fingida contrariedade. 


Outubro 1981 


Mia Couto






Sem comentários: