SEP
(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)
Quando me disseram "não se vem à vida para
sonhar" passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi
materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim
fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas
raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia
das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão
me apaguei. Estava só para me encher de
gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente
olhar de frente a verdade das pequenas
coisas: esta água vem de onde, quem teceu este
linho, que mãos fizeram este pão?
Desloquei-me para tudo ver de um outro
lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio
infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas
vozes que me habitavam silenciosamente. Entre
mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e
poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o não semear.
Terras que golpeava com ternura eram feridas
que em mim se abriam para me curar. Eram
terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes
eram mãos de um corpo que ainda me não nascera.
Surgiam da obscuridade para afastar a água
e nela me deixar tombar. Tecido que escapava da
mais bela das lavadeiras eu ia pelo rio, a corrente
insuflando-me e eu deixando-me arrastar com
fingida contrariedade.
Outubro 1981
Mia Couto
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